sábado, 2 de outubro de 2021

O demônio do silêncio, poema RCF



A manhã é feminina ou masculina?
Certos dias a vagina da manhã se abre infravermelha
com seus raios de grandes lábios.
Outros dias são emasculados pela névoa
que catarata o falo do silêncio.
Dentro de casa,
a puerícia da luz fraca,
as paredes urinando umidade e descaso.
Aqui habita o demônio do silêncio
que queima mais que a palavra devassidão.


(do livro Eterno passageiro, 2004, Varanda)

imagem retirada da internet

quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Miudezas do campo, poema RCF




Lavramos conosco uma plantação de tempo.
Um homem cerrado e savana, cheio do tempo miúdo,
retorcido e esparso, que nada produz,
a não ser o minuto inorgânico, que não germina nem morre,
apenas acrescenta praga aos dias ordinários de vegetação rasteira.

Essa plantação, que não alimenta, vai corroendo o minuto,
que é o tempo em cápsula, não é plantação que se veja,
mato que se perceba, árvore que dê frutos,
vários grãos de passado, a vida vivida de minutos nulos,
o vasto latifúndio de sementes perdidas
fazem o verdadeiro silo do homem:
a safra de foices, a colheita de terra seca.


(do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Os dois portos, poema RCF






I

O porto, deserto, tem vontade de raízes.
Cada calçada estrangeira é um convés arquejante,
navegação de baixo calado, espessa longitude,
a foto que me pedem não cabe numa vida a 3 x 4.


II

O porto afinal não existe:
argamassa feita de partidas de pedra e nervuras dúcteis,
as heras são as amarras indolentes,
as cordas músculos que se distendem.
Irresoluta, a vida se encaixota e espera
na incúria insalubre dos porões.

O porto me afunda em vez de me ancorar.
Sou apenas imagem fugidia
de um cais
que nunca visitei, embora viva nele.

A morte,
ora, a morte
é que é o porto onde o corpo atraca,
sem corda, só com a âncora de madeira.

O porto é a dispersão da pedra,
o mar domado,
lenço exsudante
em forma de borrasca
que nada agita além de nós mesmos.





domingo, 26 de setembro de 2021

A vida em demasia, poema RCF






Não sei onde está meu extremo.
Temo a demasia
que tudo preenche
e não deixa espaço à vida.
O amor não é um apêndice,
mas muitas vezes se pode extirpá-lo.
Quando chego perto de mim,
tenho medo do contágio,
posso ser virulento,
posso ser inofensivo.
Às vezes me evito,
deixo a dor em casa
e alugo uma dor no cinema.
A dor de existir,
órgão que não posso extirpar,
não dorme nem durante o sono.
E, mesmo dormindo,
me sonha que me vigia
e vigia para que eu sonhe
que, mesmo dormindo,
tenho a dor de viver desperta.                                   



(do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)