se aguça quando
falecem as marcas do tempo
e só pode saciá-lo
a memória dos vivos.
Quem me ensinou a dar nó
na gravata foi meu vizinho. Era um homem magro, de personalidade esquiva,
gentil, abria as portas para quem vinha com o carrinho de feira, furioso nas
reuniões de condomínio. Costumava aparecer como extra nas novelas da Globo.
Trabalhara a vida inteira num banco, aposentou-se, aprendeu a manusear tachas
em couro, foi parar na General Osório, aos domingos, numa barraca em que se
apresentava de rabo de cavalo, óculos escuros redondinhos e um cavanhaque
branco.
Encontrou-me
na garagem, cumprimentou-me, voltou e perguntou o que eu fazia de terno, ia a
uma recepção formal, diabo, não estava acostumado àquilo.
–
Desculpe me intrometer, mas isso que está no seu pescoço não se pode chamar de
laço de gravata.
– Quase compro uma
gravata borboleta com elástico, a droga do laço pronto.
Afastou-se, conferiu,
mostrou-se orgulhoso. Eu via-o sempre na televisão. Meu programa preferido era
buscá-lo no fundo das cenas, onde aparecia dançando, olhando um acidente,
fazendo feira, torcendo na arquibancada, toda e qualquer cena de multidão,
dessas em que se movem pessoas atrás dos personagens e não se sobressai
ninguém, lá estava ele, com seu rabo de cavalo, seus oclinhos, sua barbicha
branca aparada. Não demorou muito, morreu de um infarto fulminante, em sua casa
de Mangaratiba. Tivera uma discussão na reunião de condomínio, era o síndico do
edifício, fora acusado injustamente de roubo.
Entrei na capela, vi
minha avó num canto, caminhei em direção ao ataúde, meu pai estirado lá, tão
íntimo e tão próximo, tão vivo, diria, porque nos últimos tempos estivera mais
morto que vivo em cima da cama do hospital. Não conseguia ter o mesmo
sentimento de dor que os meus parentes. Meu avô andava meio biruta, comparecer
a um velório, mesmo que do filho dele, seria inútil. Ele se perguntaria o que
estava fazendo lá, não reconheceria o morto e veria a todos como representando
uma perda que não existia, já que desconheciam a quem estavam velando. Dois
dias antes vira o letreiro de um filme de Jerry Lewis, e, torpe, no velório, perguntei
à minha mãe se ela me deixaria ir ao cinema. A gravata do meu pai era vermelha
com bolinhas brancas. Eu ficava olhando para ele, vestido para trabalhar. Pouco
convivi com aquele homem severo que agora estava ali deitado. Lembro
perfeitamente do nó da gravata, parecia que saía do gogó do meu pai, alteado,
vermelho tinto.
Tudo
ficara cinza de repente. Tonteei, segurei-me nas paredes, caí no chão.
Levaram-me para o hospital e foi o início dos ansiolíticos. O primeiro era cor
de rosa. Não tinha nada no coração. Ou melhor, o coração era apertadinho. E a
razão é que minha mulher deixara a recepção do hotel na praia de Copacabana e
eu estava desempregado. Com uma cabeça dessas era difícil passar nos testes. Já
estivera em São Paulo, na Alcântara Machado no centro do Rio, passara dois
meses trabalhando de graça numa agência na Rua Cosme Velho. Lá o sujeito me
dissera: você sabe escrever, agora espera, um dia pode ser que abra uma vaga.
Ora eu não podia trabalhar meses e meses de graça esperando que uma vaga se
abrisse. E sabe-se lá se seria aproveitado.
Agora
o diretor de gravata vermelha me dava uma chance: fazer um anúncio de uma
página de revista. O produto era uma fotocopiadora japonesa compacta que ia
competir com a Xerox. Eu deixo o Oliveira contigo, um dos nossos melhores
leiautistas, me dissera o diretor. Isso era depois das seis horas da tarde. Eu
estava exausto, tinha tomado dois somaliums.
Não me vinha ideia nenhuma. O sujeito estava de mau humor. Pudera. Não esperava
que um aspirante a redator o deixasse preso ali no escritório depois das seis
da tarde. Não fora simpático comigo, de vez em quando olhava o relógio. Eu
rabiscava absurdos: a sua grande imagem num pequeno quadrado. Não, não, tudo
besteira. As outras frases eram piores. O tamanho da sua economia. É, podia
ser. Mas a máquina, mesmo sendo menor que a Xerox, era grande. Um desastre.
Cheguei
em casa arrasado, a mulher grávida, outra vez a turvação cinza, onze horas da
noite e não tinha conseguido fazer uma frase. Desgraça. Tomei mais remédio. O
mundo era absolutamente cinza. Eu não poderia lutar contra qualquer coisa que
fosse cinza. Aquela era minha última tentativa. Desisti. Até dar de cara com um
anúncio. Pedia redator. De mala direta. Eu teria que redigir cartas, folhetos e
outros tipos de propaganda para ser vendida pelo correio. Fui aceito na empresa
aberta por dois caras que haviam trabalhado no Reader’s Digest. Discos clássicos, globos terrestres iluminados,
livros sobre curiosidades.
Escondi-me
na sapataria quase na esquina. Minha mãe saíra de casa toda arrumada, oito
horas da noite. Ela namorava um oficial da Marinha. Newton era imediato e devia
ter seus trinta anos. Minha mãe andava pelos quarenta, coisa assim. Ela tinha
vergonha de a verem com um homem mais novo. Eu gostava do Newton, que me levava
ao barbeiro e me apresentava como filho dele. O barbeiro estranhava, eu tinha
quase dez anos e só podia ser filho de Newton caso ele tivesse sido pai aos
vinte anos. Depois a gente passava alguns domingos na casa da mãe dele, quando
Newton não estava embarcado. Eu gostava da casa em São Cristóvão, havia
quintal, galinhas e coelhos. Vez ou outra ele me levava para assistir a um jogo
no Maracanã. Quando ganhamos a copa do mundo, fomos ver a chegada dos jogadores
na Avenida Brasil. Conhecemos Newton ao viajar de volta para o Rio no Almirante
Alexandrino. Minha mãe tinha pouco tempo de viúva. Eu a via dançar no navio e tinha
ciúme. Cheguei a puxar um canivete para Newton. Ele me desarmou, jogou o
canivete no mar. Havia um cheiro insuportável de coco babaçu que me enjoava.
Minha
mãe então se encontrou com o homem de gravata vermelha que a esperava na
esquina do Bob’s. O homem de gravata vermelha era Alfredo. Era um sujeito
bonito, alto, alourado. Um homem primário, de poucas palavras, desconfiado.
Tinha sofrido uma traição brutal. A mulher, que ele chamava de dona Abóbora,
com desdém ao nome verdadeiro dela, o havia traído com um funcionário do
cinemazinho que ele gerenciava no subúrbio do Rio. O funcionariozinho levou
dona Abóbora e seus dois filhos. Alfredo nunca mais procurou os filhos. Só
quando estava à morte, os filhos apareceram. Alfredo se virou na vida como
pôde. Trabalhou em todos os ofícios possíveis, entre eles, gerente do Parque
Shangai. Passei de ter um oficial da Marinha como pretende a padrasto a um
sujeito como Alfredo que virou mito para mim ao me levar ao Parque Shangai e
liberar todos os brinquedos ao filho da sua amante.
O
último e mais constante ofício de Alfredo foi ser gerente de casa de jogos de
carta. Levou anos dirigindo um clube em Copacabana, cuja única atividade era o
jogo. Alfredo era exímio jogador, mas nunca jogava. Uma regra que não estava
escrita, mas que ele cumpria ao pé da letra. Dirigiu o jogo no Clube Leblon, na
General Urquiza, onde fui a alguns bailes de carnaval. Fechado o clube para dar
lugar a um prédio de apartamentos, ele foi para o Leme e aí ficou até morrer.
Alfredo era primo de Dias Gomes. Fomos várias vezes na casa do Dias Gomes.
Certa vez, perseguido pela polícia política de Carlos Lacerda, Dias se escondeu
no apartamento minúsculo de Alfredo. Alfredo tinha uma vida tão anódina que
ninguém acharia Dias Gomes no apartamento de Alfredo.
2
Chabubi era um menino
pálido, sem lábios, assustadiço, de cabeço melado e escorrido, fungava sem
parar, olheiras mais para árabe que para judeu. Morava no mesmo prédio da
Visconde de Pirajá. Eu ia assistir a filmes sobre americanos e nazistas no
cinema onde hoje é o Chaika, com cadeiras de madeira, e via Chabubi com os
olhos arregalados no escuro. Não brincava com os outros meninos, vivia
ensimesmado e fugindo de uma Gestapo que sempre devia estar em outro quarteirão
ou mesmo na Prudente de Morais, numa velha fábrica abandonada. Para Chabubi ali
devia ser o campo de concentração, com seus tijolinhos marrons e a enorme
chaminé fabril.
Outro
judeu é uma mulher. A judia morava no apartamento do décimo andar. Raquel, ou
dona Raquel, era clara, bonita, mas com nariz curvo, baixinha, de olhos claros,
o rosto manchado de sardas. Não devia ser muito velha, porque, sendo garoto,
ela criava em mim certa sedução. Via-a poucas vezes. A última, vamos dizer,
propriamente não a vi. Abri a porta do elevador, dei de cara com o lençol
branquíssimo. Dois homens lá dentro. Um deles espalmou a mão. Não pode entrar. A
expressão do rosto era de desconsolo. Não sabia se ficava irritado ou se tinha
pena de mim por ter presenciado a cena. Ela morrera de coração. Achava indigno
morrer assim, rudemente, e ser levada enrolada num lençol num elevador de
serviço.
Também me lembro de Ester
e Davi Montenegro. Este último estudava comigo no Brasileiro de Almeida. Apesar
do nome cristão, era um judeuzinho empinado, sem queixo, com buço exagerado e
uma palidez que acreditei ser comum à raça. Acanhado, gago, Davi vivia pelos
cantos e era vítima de algumas brincadeiras cruéis por parte de Orceli, um
grandalhão, atrasado em um ano, que maltratava a todos nós. Eu me socorria dos
meus ataques de asma. A solidariedade de Orceli era imediata. E chegava até a
me proteger. Ninguém mexe com ele, ameaçava. Já Davi não escapava. Orceli o
pendurou no quadro-negro e grampeou-lhe a bunda. Tinha pena de Davi. Mas tinha
medo de Orceli. Sentia remorso, via-me como covarde por não defender Davi. Como
eu ia defender Davi se mal conseguia me defender?
Lea era diferente.
Conhecia-a no André Maurois. Era uma figura frágil, de voz quebradiça. Tinha
unhas grandes e bem cuidadas para uma adolescente. Procurava-me para conversar
sobre livros. Gosto dos diálogos, às vezes chego a pular a descrição e ficar só
com os diálogos, me disse ela. Sugeri que ela lesse peça de teatro. Argumentou
que os diálogos da peça de teatro são diferentes do romance. Não me explicou,
contudo, qual era essa diferença. Eu ficava em casa matando a cabeça para
entender o que era diferente no diálogo da ficção e do drama. Sempre me
impressionaram as figuras desconexas: corpo de um, cara de outro. Uma cabeça
pequena num corpo avantajado, voz grave em corpo franzino ou mão envelhecida
num corpo jovem me davam a angustiosa sugestão de um corpo montado, uma falsa
dublagem ou um truque qualquer para enganar meus sentidos.
Fiquei
mais amigo de Lea. Visitei sua casa, a conversa sempre sobre livros. Sua mãe me
recebia com chá e bolo. Não fui acostumado a chá, tomava constrangido e sem gosto.
Lea, em casa, era formal e se parecia mais com a mãe que com a garotada do
André Maurois. Passado um tempo, ela não comparecia mais às aulas. Liguei e não
conseguia falar com ela. Tomei um ônibus, desci na Miguel Lemos, subi ao
apartamento, toquei a campainha. Lá de dentro, depois de esperar em meio à
penumbra de uma sala com grossas cortinas de veludo, surgiu a mãe. Lea não pode
mais conviver com os garotos do colégio, me disse ela. O argumento era o mais
desastroso: ela era judia, ia se casar, o marido, estudante de medicina, não
queria amizade nem de góis, nem de colegas homens, mesmo judeus. Não sei se
permaneci mais atordoado quando vi dona Raquel enrolada num lençol, morta, no elevador,
ou quando ouvi aquela afirmação desprovida de lógica da mãe de Lea.
3
Pelo
que posso me lembrar, Newton é o comunista mais antigo. Oficial da Marinha, não
tinha atividade política. O irmão era sindicalista, operário de uma oficina
gráfica em Bonsucesso. Fora preso depois do golpe de 64. Era membro do Partido.
Mas Newton apenas tinha simpatia pelos marinheiros revoltosos. Falava sobre O encouraçado Potemkin, que, àquela
altura, eu não sabia o que ou quem era. Minha mãe era inculta, embora tenha se
casado com um homem culto como meu pai e namorava Newton. Alguma coisa estranha
tinha mãe que atraía homens como meu pai e Newton. Já Alfredo era apenas um
grandalhão rude e magoado pela vida.
No
dia do golpe fui ensinar Chabubi a jogar botão. Eu jogava com bolinha de
algodão, que é muito mais difícil que jogar com dadinho. Mas usei dadinho para
ensinar Chabubi que até mesmo desconhecia futebol de carne e osso. Expliquei
tudo, mas ele tinha dificuldade de entender. De onde Chabubi viera não havia
futebol, não havia paz, não havia esporte. O único esporte da família de
Chabubi era plantar. A família de Chabubi era comunista, mas de onde viera
havia mais comunista que a família de Chabubi, então eles tiveram que emigrar.
Eu não sabia direito a história da família dele. Mas Chabubi não tinha medo dos
comunistas, tinha medo era dos filmes de guerra onde os nazistas queimavam
judeus.
–
Chabubi tu é russo?
–
Chabubi não é russo.
–
Chabubi é comunista?
–
Chabubi é brasileiro.
–
Que brasileiro, Chabubi. Tu nem sabe o time do Flamengo.
Ele
se debruçava sobre a mesa de botão, apertava a vidrilha do relógio que pulava
sob a pressão, o dadinho ia se perder sobre a trave de plástico. Chabubi olhava
os aviões de carreira sobrevoando nossas cabeças. O ruído dos motores no voo
rasante, bem perto dos prédios, a gente sem entender que era o golpe que se perpetrava,
os militares aquartelados, os tanques tomavam as principais vias, um silêncio
de feriado, as ruas vazias, o vento dando cabriolas nas folhas de jornal.
Chabubi
ia à praia e continuava no campo de concentração. Os ossos aparecendo. Embora
moreno, a palidez do rosto se espalhava pelo corpo como uma grande mancha esmaecida.
As mãos e os pés magros e enormes. Não suportava a umidade e o calor sufocante.
Pensava nele como um judeuzinho sofrendo as altas temperaturas da câmara de gás
da praia. Eu temia que Chabubi se matasse como o coração enforcou dona Raquel. Chabubi
não ia à escola. A mãe de Chabubi queria que ele cursasse uma escola judia. Eu
não conhecia nenhuma escola judia. Mas o judaísmo de Chabubi era esquisito. Não
entendia porque Chabubi não era um judeu comum. Talvez Chabubi fosse um judeu
árabe, ou talvez Chabubi não fosse judeu, só apenas árabe.
–
Chabubi, tu é muçulmano?
–
Não, Chabubi é judeu.
–
Chabubi, tu nem sabe o time do Flamengo.
Outro
comunista era o Paulo. Viera ao Rio para estudar. Morava numa pensão do Catete.
Entrara na política estudantil. Usava calças pescando siri e, quando ia almoçar
na minha mãe, cansado da comida do Calabouço ou porque estava sem grana
nenhuma, Paulo, de uma família grande e tradicional da nossa cidade, falava
sobre a revolução cubana, de Fidel Castro, da invasão da baía dos Porcos e da
sociedade futura, justa e igualitária, onde todos teriam seu prato de comida, casa,
educação de graça e calças pescando siri.
Viera
para o Rio a fim de ingressar na diplomacia. Participava da UNE, pixava muros,
fazia discursos exaltados, aparecia em casa com o rosto cheio de hematomas. Minha
mãe fazia curativos. Não tinha medo de que batessem em seu rosto ou nas pernas.
O medo é que quebrassem os dedos. Alimentava sonho de ser pianista. Em nossa
cidade, tocava na televisão, desde Chopin até Ernesto Nazareth. Programa ao
vivo. Levantava-se e agradecia. As palmas eram falsas. Curvava-se para os
poucos técnicos dentro do estúdio. Ele estava no restaurante do Calabouço
quando o Edson foi assassinado. Paulo às vezes desaparecia e minha mãe não
sabia se ele havia sido preso, se se perdera na noite do Rio tocando piano ou andava
de namorada nova, gola rolê no pescoço e barba rala de Che Guevara na cara.
Meu pai, por sua vez, era
antagonista até mesmo nas posições políticas. Tenho guardado comigo uma ação
que ele defendeu contra o estado a favor de uma mina de ouro dos ingleses em Maracaçumé.
A ação era simples. O estado cedera as terras para os ingleses que, obtida a
concessão, não exploraram as minas. Passados vinte anos, o estado resolveu não
apenas recuperar as terras como cobrar um valor pelo descumprimento do acordo.
Meu pai defendeu os ingleses. Pediu que fosse suspensa a multa, que os ingleses
voltassem a obter a concessão e, mais ainda, que o estado indenizasse a Steel British Company por não cumprir
sua parte no acordo: dar caminho para escoar a produção. Depois meu pai
publicou a defesa dele numa brochura cujo único exemplar restante, amarelecido,
de folhas quebradiças, veio dar à minha mão. E lá, na introdução, estavam as
ideias do pai: era um homem de direita.
Não conheci muito meu
pai. Tenho dele algumas imagens dispersas que se amontoam. Difícil distinguir a
época, parecem mesmo se sucederem uma atrás da outra. Lembro-me dele levantar o
namorado de minha irmã, um brutamontes, tudo isso para mostrar que, depois da
operação, estava recuperado. Outra imagem é ele me levando para a faculdade. Dando
aula, eu calado. Os alunos fazendo graça para o filho do professor. Muda para
um passeio no Ministério da Fazenda, no Rio. Ele me comprara um tanque. Gastei
toda a pilha dirigindo o brinquedo. Meu pai tinha que dar dois passos e parar a
fim de que o tanque chegasse a seus pés. Ele no Hospital dos Servidores, na
Saúde, olhando-me do leito enquanto eu fazia tiro ao alvo com um rudimentar
arco e flecha. O revólver prateado de cano curto com cabo de madrepérola em sua
mão, brilhando, ameaçador, proibido.
Era
um homem de saber, nervoso, fazia duas ou três coisas ao mesmo tempo. Fumava –
foi o cigarro que o matou – quatro maços de Continental sem filtro por dia.
Bebia mais do que o recomendado, detestava a inércia, amava os discursos
longos. Tinha o físico miúdo, mas musculoso, o cabelo pretíssimo engomado numa
brilhantina exagerada. Nariz grosso sobre um bigodinho bem aparado. Vivera como
um nômade intelectual. Fizera concurso em vários estados e passara em todos e a
todos abandonara. O que mais impressionava os amigos era o desprendimento. Talvez
um dos mais gordos salários fosse o de auditor da Receita Federal. Passou em
primeiro lugar, logo renunciou ao cargo: ofício de polícia contábil, números em
vez de letras.
Já
minha mãe viera de uma cidadezinha da baixada. A terra inundada pelas águas
dava um belo criadouro natural. Um campo imenso e verde a perder de vista. De
perto, os pés mergulham na água, as plantas flutuam, a terra encharcada. Origem
humilde, filha terceira de um carteiro, criada entre rezas da igreja, festejos
escolares e namoros de janela, ela conheceu o jovem advogado que vinha para
tratar de uma suposta posse de terra de sua família. Os parentes de minha mãe alegavam
que a cidadezinha ao lado fora terreno de fazenda de um bisavô. Era matéria
difícil. Mesmo que fosse realidade, seria complicado, oneroso e improvável
devolver terras de ontem onde hoje existem casas, ruas, avenidas, templos, mercado,
prédios públicos.
Meu
pai perdeu a causa, mas ganhou minha mãe. Era uma menina grande, bonita,
sonhadora. Meu avô criava leitões, ensinou a filha o código Morse e falava de
Kublai Khan que ele conhecera em livros grandes na biblioteca de um juiz. Meu
avô era o Marco Polo da sua cidadezinha perdida entre terras alagadas,
manguezais e barcos apodrecendo no cais. O velho construíra um mirante na casa
para colocar a luneta e ver a lua. Quando envelheceu, meu avô perdeu as pernas
por causa do diabetes e tinha que ser carregado até o mirante onde, insone,
passava as noites vigiando o espaço distante.
Antes
de eu nascer, meu pai andou pelo interior do estado, depois fez concurso para o
Piauí. Ia abandonando os empregos, aventuroso, sonhando com novas cidades,
inquieto. Buscou Goiânia, naquela época uma cidade inventada, recente, virginal
como são os inícios. Trabalhou fora de sua profissão. Morou num hotel com minha
mãe, deu aulas de francês e português num colégio de freiras. Foi para a Bahia
e lá, em Salvador, montou um escritório com Felício, sobrinho de um padre que
deixou tudo para ele após a morte. Diziam que o tio de Felício havia surrupiado
as doações das paróquias por onde andava. Era o tempo da guerra, falta de
mantimentos, toque de recolher, apagar as luzes à noite, racionamento de tudo,
andava com uma filipeta para comprar alimentos. Desistiu de Salvador e voltou para
casa. Felício enriqueceu, mas meu pai nunca se arrependeu de largar o
escritório, Salvador e a guerra. De volta, vinha com as malas cheias de
lembranças e com minha irmã, nascida em Goiânia.
Minha
irmã conheceu parte desse espírito aventureiro, vagamundo, nervoso e dispersivo.
Meu pai só foi se estabilizar quando ela fez cinco ou seis anos, depois de
passar por várias cidades do interior. Minha irmã foi testemunha de meu pai
acolher condenados pela justiça por crime de morte. Viravam jardineiros,
cozinheiros ou trabalhavam no fórum levando e trazendo papéis. Um deles era
calmo e pacífico, jamais se imaginaria a crueldade com que matou a mulher e
escondeu o corpo. Lá se via ele capinando, arrancado ervas daninhas, plantando
rosas. Ao fazer catorze anos, minha irmã foi estudar no Sacre Couer de Marie,
no Alto da Boa Vista. Passava os fins de semana na casa do meu tio Alceu que
morava na Conde de Bonfim. Não voltou mais para casa. Saiu do internato para
casar, aos quinze anos, com um sujeito grandão, formado em direito, mas
apatetado, entre ingênuo e salafrário, que engravidou duas outros mulheres e
povoou o mundo com bastardos.
4
Ia
para casa dela, no Grajaú, onde morava com a família num sobrado. O pai era
jornalista, dirigia um carro automático numa época em que ninguém tinha carro
automático. Bebia uísque, comia castanha, tudo como remédio para o coração que
o fulminou. Fora tuberculoso e se apaixonara em Correias por outra mulher
tuberculosa. Os dois sararam, mas o amor não sarou. Era um homem feio, bonita
era a mãe. Todo mundo ali tinha pedigree. A mãe era irmã de um crítico de arte,
o pai era irmão de um jornalista famoso. Até hoje se fala nele. As madrugadas
em que me afundei nas nádegas de Cecília como quem se afunda em almofadas, a
televisão ligada para abafar os gemidos.
Mas
Cecília tinha um noivo com um só olho. Ela havia desfeito o casamento, viajara
para Londres. O noivo nunca se conformou. Era motoqueiro, tinha perdido um
olho, atingido por uma pedra lançada por estilingue. Não era a última vez que
um zarolho perseguia minha mulher. Mas fiquemos com o zarolho da vez. Um sábado
não quis fazer sexo comigo. Havia passado a tarde com o antigo noivo, depois
que ele ameaçara se suicidar. Aquela não era a única traição. Ela era a favor
da liberdade sexual. Queria ter vários parceiros. Eu não conseguia ter outra
parceira. Ela era mais bonita como mulher do que eu como homem. Os parceiros de
Cecília não eram nenhum Alain Delon. Eram principalmente intelectuais, ela
tinha tesão pelo pensamento.
Decidi
dar um tempo e, nas férias, me mandei para a Argentina. Depois de uma estada em
Buenos Aires, onde tudo me fazia lembrar dela – as confeitarias, as livrarias, até
mesmo o cemitério da Recoleta –, resolvi me aventurar por Mendoza para alcançar
o Chile. Perguntava-me por que tudo me lembrava ela se nunca estivemos juntos
em Buenos Aires. Simplesmente, só percebi depois de sair de Buenos Aires,
qualquer coisa me lembrava ela. Peguei um trem, era época de ditadura aqui e
ditadura lá. No meio da viagem, em meio a um mato crescido, o trem parou,
entraram militares e nos pediram documentos. Eu estava conversando com uma
uruguaia que ia ver o Maharishi.
–
Não brinca, o mesmo dos Beatles?
– Esse mesmo.
O
Maharishi Mahesh Yogi era uma
lenda. Ganhava dinheiro à beça com aquelas palestras de meditação transcendental.
Nos Estados Unidos, uma legião de garotos e garotas de classe média, vestindo
batas brancas, com flores no cabelo, pagavam uma nota para repetir com o Maharishi o mantra sagrado.
A
uruguaia podia fazer com que eu esquecesse Cecília. Era bonitinha e não parecia
ordinária. Resolvi ver o Maharishi com
ela. Éramos todos cabeludos, sujos e com cara de terrorista. Não deu outra: ao
chegarmos a Mendoza, havia um comitê de recepção. O comitê era formado por
guardas civis e soldados do exército portando metralhadoras.
O
sujeito que me rendeu tinha o cano da arma virado para mim. Ele pediu
documentos, espichei o queixo, mostrando que estava dentro da mochila. Abaixei-me
para pegar a mochila, ele gritou: Mãos para o alto. Documentos. Outra vez,
espichei o queixo. Aquela pantomima de abaixar e levantar as mãos não parecia
ter fim. Fiquei com medo de levar um tiro. Chutei a mochila em direção a ele e
disse: O passaporte, o passaporte está dentro da mochila. Fomos levados para um
camburão. A uruguaia já estava lá dentro. Todos se deram as mãos, começamos a
rezar. Meu Deus, o que eu estava fazendo ali? A uruguaia me perguntou se estava
de pé a ida ao estádio para ver o Maharishi.
–
Você vai com a gente ver o Maharishi?
–
Estamos presos, Maria. Estamos presos, como vamos ver o Maharishi?
Levaram-nos
para uma grande e nova central de polícia, fora da cidade. Ficamos de cara para
a parede, um ao lado do outro, três policiais de metralhadora apontada para as
nossas costas gritavam: Mãos na cabeça. Do meu lado esquerdo estava Maria, do
outro se colocava uma mulher de no máximo dezoito anos, com olheiras profundas,
olhos vermelhos e uma palidez de cera.
–
Mira, chico – disse ela. – Fala para
a Maria que estou com os comprimidos no bolso da calça.
Dei
o recado para Maria. Não sei exatamente se a moça era uruguaia ou argentina, os
sotaques sureños são assemelhados. Ela
me olhou de forma vaga, turva, desconhecia se ela divisava em mim um rosto ou
apenas ouvia longe uma voz confusa.
–
Dile a ella para que vaya al baño y bote todo
en el inodoro.
– Inodoro?
– Inodoro, retrete. Como ustedes
dicen donde se urina?
– Vaso...
–
Eso, el vaso.
–
Vaso sanitário.
A moça começou a
fingir que passava mal. Levaram-na ao banheiro, ele se debruçou na privada e
fez seu teatro: vomitava, engulhava, punha a mão na barriga. Tirou do bolso da
calça os comprimidos, jogou na água e deu a descarga. Voltou para junto de mim
e disse: Dile a Maria que ya me deshice de
todo.
Eu
sentia os braços pesar. Depois de quinze minutos, os braços pesam uma tonelada.
É difícil manter uma tonelada sobre a cabeça.
–
Se baixarem o braço, eu atiro.
Aos
poucos os cucarachos começaram a ser liberados. Ditadura na Argentina, ditadura
no Uruguai, ambos os países tinham os dados compartilhados. Mendoza mandava
averiguar em Buenos Aires, via que não existia nada contra os uruguaios, liberava-os.
Percebi que ia ficando por último. Até que fui chamado. Um sargentão gordo que
mais lembrava o sargento García do Zorro olhou para mim e sorriu com os dentes escuros.
–
Sabe, brasilero – disse ele. – Não
existe ficha tua em Buenos Aires.
–
Isso quer dizer que não há nada contra mim.
–
Não é tão simples, brasilero, isso
pode significar que tu éres um puta
de um guerrilheiro.
–
Quem, eu?
–
Tu, brasilero, hijo de Pelé.
Compreendi
que a conversa havia chegado a um nível de desatino que não havia brecha para
contestação ou argumentos racionais. Mantive-me calado, o que piorou minha
situação. Atrás do sargento García havia um soldado armado com um híbrido de
metralhadora e pistola.
Demorou
mais meia-hora até que se convenceram de que eu não era nem filho de Pelé, nem
um puta de um guerrilheiro. Liberaram-me no meio do fim do mundo. Andei pra
cacete até conseguir um táxi que me levou ao centro de Mendoza. Toda a cidade
já sabia do acontecido e me negavam hospedagem – no hay habitación – nas pousadas e hotéis. Tive que me afastar do
centro até encontrar uma espelunca nas afueras
de Mendoza, onde passei dois dias andando nas veredas ou trancado no quarto, de
olho no teto, tentando me recuperar do susto.
Três
dias depois tomei um ônibus, que no Brasil podia ser chamado de lotação, subi a
Cordilheira dos Andes, entramos em Santiago do Chile. Havia poucos anos, o país
caíra na ditadura de Pinochet. Contudo, eu não sabia que havia toque de
recolher às dez da noite. Estava num restaurante quando começaram a limpar a
mesa, vieram com a conta e me expulsaram. Andei tranquilo pelas ruas vazias,
desconhecendo o perigo de levar uma bala por apenas ser um vulto indistinto
desafiando o poder. Fugi apavorado de Santiago em direção a Antofagasta. Eis o
roteiro: deserto de Atacama, Antofagasta, Arica. Na fronteira com o Chile
dividi o táxi com um casal brasileiro e juntos chegamos até Arequipa. Ele era
professor universitário de Matemática; ela, aluna dele.
Em
Arequipa, dormimos no mesmo quarto de hotel. Tomamos o café da manhã, fomos até
o Convento da Companhia e depois à Plaza de Armas. Havia uma manifestação de mineiros.
Aqui era proibida passeata ou coisa parecida. Ficamos boquiabertos, encantados
com as faixas, os cantos, o colorido das roupas. Todos tinham cara de inca,
baixos, troncudos, as mãos calosas. Ethan, o professor de matemática, era
judeu. No pescoço dele se pendurava um cordão com uma estrela de Davi. Duas
meninas peruanas se aproximaram. Uma delas, Alicia, perguntou para Ethan se ele
era judeu. Alicia era também judia. Agradeci ao povo de Israel por nos dar
hospedagem.
Alicia
morava num bairro de classe média alta. Colocou o casal no segundo andar da
casa, no quarto dos pais que estavam viajando. A mim me arrumou num quarto com
duas camas. Aquilo era estranho, não parecia ser o quarto de Alicia. No meio da
noite, reclamei que estava com frio.
–
Mira – ela me disse –, tu puedes dormir comigo aqui, pero nada
más, has entendido?
Sentia o calor do corpo
dela. A respiração era compassada. Tentei adormecer, não conseguia. Arequipa é
uma cidade fria. A cidade tem uma catedral de pedra branca, pedra vulcânica. A
pedra branca dá uma sensação enorme de frio. Era como se eu estivesse deitado sobre uma
pedra branca.
– Estás despierta?
– Que quierés?
– Conversar. Não consigo
dormir.
–E por qué no duermes?
–
Sigo teniendo frio.
Ela
me aconchegou como uma criança. Sentia seu hálito, profundo, aromático. A
respiração me acalmava. Do seu camisolão
vinha um cheiro distante de lavanda. Distraí-me um pouco com o aroma que me
remetia à infância. O escuro, que antes também me parecia frio, agora tomava um
caráter de estufa. Protegido e disperso, em meio a uma terra estrangeira e
distante. Pouco a pouco os lábios foram se aproximando.
Alicia
nos deu um endereço em Lima. Coco nos recebeu amistosamente. Entreguei-lhe o
bilhete de Alicia. Não sabia o que continha. Coco leu, nos ofereceu a casa, num
subúrbio da cidade. Coco era um sujeito baixo, bonito, de físico bem talhado,
economista de profissão, militante de um partido de esquerda que apoiava a luta
armada. A casa de Coco ficava numa encosta, ele ocupava sozinho a parte de
baixo. À noite, não fazia frio. Sentia era tremer, pequenas sacudidelas numa
terra dada a terremotos.
O
casal brasileiro e eu passeamos por Lima. Fomos visitar Coco no Ministério da
Fazenda. Era um burocrata de dia, de noite se reunia com o partido e tornava-se
um militante de ideias exaltadas. Coco tinha admiração por intelectuais
brasileiros de esquerda. Falava deles como se fossem amigos íntimos. De um
deles Coco realmente era próximo. Recebia cartas, comentava artigos, mandava
discursos, telefonava uma vez ao ano.
–
Minha vontade é conhecer Salvador – dizia Coco para mim, sentado em sua varanda
que dava para uma ribanceira. Eu ficava pensando que se houvesse terremoto aquela
terra poderia invadir a casa. – Ele mora em Salvador – dizia se referindo ao
amigo brasileiro –, no bairro de Rio Vermelho. Tu conoces Rio Vermelho?
–
Me voy en el carnaval.
–
Ah, el carnaval – suspirava Coco e
bebia um chá escuro com aroma de jasmim.
Fomos
ao bairro de Miraflores, num apartamento com janelões para o mar. Eu ficava
intrigado como Coco se dava com aqueles burgueses. Cheiravam cocaína. O casal brasileiro
e eu não cheirávamos cocaína. Então ficamos sentados, olhando o mar escuro,
tomando pisco. Coco se aproximou de nós. Estava tristonho, acabrunhado, pensei
que devia ser algo político. Aquela dupla jornada era de matar, de dia servidor
público, à noite militante de um partido que queria a queda do governo. Coco
tinha as mãos miúdas, dedos nodosos e cabeludos. Mexia a mão pequenina como se
fosse um fantoche. A imagem absurda de Coco alterou minha percepção e senti um
grande desconforto.
–
Estou cansado de ter vida dupla – disse ele. – Meu pai era um homem severo, de
poucos recursos, que trabalhou a vida inteira como antropólogo. Visitava as
comunidades pré-incaicas. Todo mundo só fala dos incas. Mas os incas foram
ferozes, inimigos tremendos, guerreiros impiedosos, dizimaram outras nações
indígenas, os remanescentes desses povos não podem ouvir falar de incas. Tenho
um pouco de sangue moche, e de outros sangues. Meu coração é um pouco a ONU.
Minha mãe era judia polonesa com ascendência russa. Fomos perseguidos por
vários governos. Desde cedo conheci a fuga, o que é viver exilado, o medo de
ser preso a qualquer momento, a vida na clandestinidade. Visitei meu pai várias
vezes na prisão. Ele entrava e saía do cárcere como quem sai de férias e se
hospeda num hotel. Metade da minha infância meu pai passou atrás das grades.
Lembro quando me vestia para visitar meu pai. Era como um menino que se apronta
para dar um passeio no campo. Minha mãe fazia sanduíches para mim e levava uma
garrafa de vidro com um suco ácido de uva. Nunca mais comi sanduíches e nunca
mais tomei suco de uva. Desde pequeno quis ser marinheiro. Imaginava que
poderia fugir daquele mundo opressivo, seja da política e dos desmandos dos
generais, seja da pobreza da minha família e o mundo que o cercava. Meu pai
cada vez mais envolvido com a luta socialista, minha mãe perdendo a visão,
abandonando a casa porque não podia cuidar da louça, de lavar roupa e da
limpeza. Meu pai, quando não estava metido com o partido, vivia para os livros.
Estudava uma pequena comunidade nos Andes que diziam ter sido antropófagos.
Levava anos escrevendo e reescrevendo suas anotações em cadernetas ensebadas.
Eu acreditava que não queria chegar a nenhuma conclusão. Adiava infinitamente o
término das pesquisas porque, se desse por findo, teria que redigir um livro,
um artigo alentado, e poria fim a uma busca que tinha sentido só nela mesmo.
Então entrei para a Marinha para fugir daquilo tudo. Iria conhecer outras
terras, outros continentes, outras gentes, outra cultura. Eu não queria ser
marinheiro, eu queria me exilar no mar. Mas a Marinha me traiu. Não viajei ao
Japão, à China, aos Estados Unidos ou à França. Fui designado para uma
embarcação no Lago Titicaca, para vigiar a fronteira lacustre com a Bolívia.
Voltava à prisão em meu país, só que agora não era uma prisão em terra, mas uma
prisão na água.
Um
dia conheci alguém especial, pensei comigo que havia chegado a hora de me
aquietar. Era uma mulher que não pensava em política. Nova, meiga, atenciosa,
sempre atenta às coisas mínimas. Uma pessoa delicada que, embora não conhecesse
Marx, nem tivesse lido uma linha de Trotsky, criava em mim a sensação de que a
luta política se esvaía, que agora eu não servia mais para nada, que sempre
fora um joguete nas mãos dos poderosos da organização. Os chefes sempre fazem acordo,
fecham pactos, e nós, militantes, que estamos na frente da luta, servimos apenas
aos seus propósitos de negociação. Mas, de maneira surpreendente, foi ela que
me convenceu do contrário. Disse que eu não seria feliz sem uma atividade
política, que eu apenas iria me afundar na mesmice da rotina, que ela, ainda
que não concordasse com minhas ideias, pensava que eu seria infeliz casado com
uma mulher morna, levando filhos na escola e jantando sempre à mesma hora. Ela
ficou doente, passei dias no hospital. Foi um período muito complicado, haviam
colocado o partido na clandestinidade, tinha saído recentemente da prisão,
andava meio escondido, trabalhava numa ótica, tingira o cabelo, deixara crescer
um bigode enorme. Eu não entendia nada de ótica. A loja também não era para ter
lucro. O dono era o tio de outro militante, um sujeito que a mantinha para dar
aparência a outros negócios do partido. Havia tarde em que não aparecia
ninguém. Nunca li tanto na vida. Não tinha muito dinheiro, morava ali mesmo,
nos fundos da loja e caminhava até o hospital com medo de ser reconhecido
porque o hospital ficava a um quarteirão de um quartel de polícia. Se me
perguntarem se algo poderia me afastar da política eu seguramente diria que
sim, que ela somente ela poderia me fazer abandonar a militância política.
Estou louco para que Alicia volte a Lima. Quero lhe fazer uma proposta. Nos
casarmos. Dentro de umas duas semanas, ela estará de volta. – Coco deu uma
pausa, bebeu um gole do vinho, olhou a taça contra a luz e depois disse: – Vamos,
creio que é hora de voltar para casa. Ou vocês querem ficar mais um pouco?
Tomei
o rumo de Cuzco. Entediado, confuso, ansioso para voltar para minha casa, não
fui a Machupichu. Viajei de táxi até Puno, atravessei o Titicaca, entrei na
Bolívia, passei por La Paz, Cochabamba e parei em Santa Cruz de La Sierra.
Peguei o Trem da Morte, entrei em Corumbá e enfiei-me num trem para São Paulo. Estava
fora há um mês. Voltei ao trabalho, pedi demissão, fui ver Cecília.
–
Você só me escreveu uma carta em toda a viagem – ela disse.
Estávamos
na cozinha da casa. A luz da manhã entrava por um basculante, dava aos cabelos
dela uma luminosidade própria, alourando o que já era louro. Eu tomava um café
amargo, vigiava os dedos dela, dedos longos, irregulares, ela tinha apenas
vinte anos e as mãos me lembravam as mãos quebradiças de Lea.
– E em momento algum escreveu
algo sobre nós.
– Não pensei que você
dava tanta importância à nossa relação ou que nome tenha. Você quer liberdade,
agora reclama que não escrevi muito. Com você, vivo confuso. Não sei onde piso.
Não sei se avanço ou recuo. Tente entender a minha situação. Se não escrevi
mais foi porque não quis incomodar.
– Como uma carta pode
incomodar? Uma carta não é a presença física. Alguém vir conversar com você
toma o seu tempo, ocupa um espaço. Mas uma carta você deixa em cima de
escrivaninha e abre quando tiver disposta.
–
Eu não estava bem.
–
Contou da sua aventura em Mendoza e não perguntou como eu estava, o que sentia
por mim.
–
Essa viagem acabou com meus nervos.
–
Meus nervos, eu, eu, eu.
–
Sei o que você sente por mim: nada.
Deixamos
a cozinha, subimos para o quarto que ela dividia com a irmã engenheira. Estava
arrumando a mala, os cabelos molhados, os olhos cinza mais cinza que nunca, o
aroma outra vez de lavanda.
–
Amanhã estou indo pra Salvador. Vou passar o carnaval lá.
–
Por que você está me dizendo isso?
–
Não sei. Pensei que você gostaria de saber.
A
mãe dela, com sua beleza serena e sulista, abriu a porta. Derramou seus olhos
em mim, como havia sido minha viagem?,e, virando-se para a filha, perguntou se
ela precisava que lavasse e passasse duas calças para a viagem. Aquela mulher
sabia da amante do marido que também fora tuberculosa. Eu olhava a meiguice
tardia da senhora, imaginava que vivia em outra época, já não se faziam tuberculosos,
nem havia mais damas da camélia, mas, apesar disso, ela continuava vivendo uma trama
do século passado.
–
Pode parecer que estou te seguindo, morro de medo de que você pense que quero sufocar
você, vigiar, controlar – disse me levantando e gesticulando em demasia. – Você
me faz ficar neurótico. Se não escrevi mais na viagem, pensei em você o tempo
todo. Mas que importa, você não quer saber se pensei em você o tempo todo. Cheguei
à conclusão de que você não quer saber o que eu sinto, ou melhor, você não me
ama, mas quer ser adorada, logo, se não escrevi que amava você, isso a
incomodou porque não interessa o que penso, mas se eu a tenho como objeto de
veneração. Fiquei num hotelzinho de merda em La Paz, estava curto de grana, não
havia calefação, passei um frio miserável. E sabe o que eu pensava para me
esquentar? Que você me odiava, me traía e ria de mim, um garoto mimado. Porque
teu ódio, mais do que teu amor, me ferve a cabeça, esquenta o corpo. Não
conheço aconchego em relação a ti, se pensava em ti como uma pessoa adorável e
meiga, carinhosa, protetora, sentiria mais abandono, e o frio me pegaria de
vez. Era preciso manter o sangue quente. E só tua indiferença me esquenta.
Tenho passagem para Salvador. Combinei com os amigos de passar o carnaval em
Salvador. Mas tenho até medo de falar isso, porque você vai achar que inventei tudo
agora para ir atrás de você. Miséria. Como eu ia imaginar que você, durante a
minha viagem, também ia planejar passar o carnaval em Salvador?
Fiquei
no Barbalho, na casa da mãe de Alfredo, uma velha de quase noventa anos. Era
uma casa original. Ela morava sozinha na parte de cima, embaixo o esquisito
filho dela, irmão de Alfredo. Era um homem estranho que vestia pulôver naquele
calor da Bahia. Mostrou-me sua coleção de xícaras penduradas por todos os
cantos. Havia mofo, umidade, um cheiro de bicarbonato, opressivo. Penumbra por
todos os lados, luzes acesas de dia. A velha, amável e insone, vagava pela casa
de camisolão feito fantasma, comendo um prato de feijão gelado com farinha
tipiti de madrugada. Identifiquei o gosto familiar pela farinha tipiti que
Alfredo recebia no Rio. Encontrei com amigos meus, saímos bêbados pelas ruas,
só vi Cecília uma vez, numa casa de estudantes no Rio Vermelho. Fomos para um
bar na beira da praia, nuvens ameaçando chuva. Pedi uma cerveja, bebi um copo, senti
enjoo. Quis mostrar que era inteligente e culto, mas fui confuso e fastidioso. Gostava
de voltar ao Barbalho, do maluco do primeiro andar e suas conversas sobre
xícaras, a mãe de Alfredo falando sozinha no casarão.
No
último dia de carnaval, me perdi dos companheiros, decidi descer até a praça
Castro Alves. Não sei bem o que procurava, estava agitado, a multidão efusiva,
histriônica, vagava absurdamente em ondas humanas para lá e para cá. Rostos
desconhecidos, rostos de máscaras, rostos com desenhos, parecia um pouco um
pesadelo cujo despertar era impossível. A consciência de que não pertencia a
nenhum grupo, não apenas ali, momentaneamente, mas na vida mesmo. Irritava-me a
multidão suarenta, dispersa, embriagada de música e afundada numa necessidade
premente de alegria. Ia chegando na praça com suas barraquinhas de comida e
bebida, quando avistei, bem destacados, Cecília e um sujeito de barba se
beijando.
5
O trem, uma maria-fumaça,
verdadeiramente fascinante, com bancos de madeira, igual aos trens do faroeste
que eu via no cinema, serviu para nossa fuga. Saímos para a casa de um parente
e, ainda escuro, rumamos para a estação ferroviária que, apesar da hora,
fervilhava de gente. Uma grande aventura, pensava eu, desconhecendo que escapávamos
de nada mais nada menos do meu pai. Ele tornara-se violento, minha mãe tinha
medo de que não apenas a machucasse, mas também me transformasse no alvo de sua
fúria. Eu vestia uma roupa de linho, vinha uma brisa fria do rio, segurava a mão
de minha mãe, atemorizado com os rostos desconhecidos, o ar famélico de alguns,
o falar alto e desabrido de todos.
Na casa da minha, tia
morcegos se penduravam nas vigas do teto. Igual na igreja em frente da casa. Eu
tinha medo dos morcegos. Era muito criança, não deveria ter aqueles
pensamentos, mas os morcegos me recordavam frutas podres e, como frutas podres,
poderiam cair das vigas em cima de mim. Minha mãe trouxe as minhas melhores
roupas: a de marinheiro, o terno de linho com calças curtas, o macacão
americano e um casaco vinho que destoava no clima quente. Mandou chamar um
fotógrafo, fiz poses, e hoje, quando vejo as fotos, me impressiono: o olhar
assustado, as mãos crispadas, a espinha reta, a respiração contida.
Com o medo de avião,
minha mãe conseguiu chegar até Fortaleza. A fuga de minha mãe era curiosa.
Embora fugisse do meu pai, usava a família dele na fuga. Meu pai teve doze
irmãos que se espalharam pelo Brasil. A minha tia do Ceará conhecia a gerente
inglesa da Fink. Ela fretara um ônibus urbano, de poltronas duras, forradas de
plástico, que levaria trabalhadores para a construção de Brasília. Foi uma
aventura pavorosa, com estadas em pensões ordinárias, vômito e fezes de
crianças acumuladas no corredor, uma mulher histérica que ria e gritava nas
curvas, refeições ordinárias que desarranjavam o estômago. Sobrevivemos, pensei
comigo que estava pronto para uma guerra ou sobrevivência na selva.
O ônibus nos deixou na rodoviária
de Salvador. De lá tomaríamos outro ônibus para o Rio. Minha mãe procurou uma
pensão. A mulher não queria nos hospedar. Depois fomos entender a razão:
prostíbulo. Eu ouvia as vozes do outro lado do tabique. A dona da pensão teve o
cuidado – e o prejuízo – de não ocupar os quartos laterais de onde estávamos.
Gemidos, gritos abafados, risos, conversas sufocadas. Minha mãe não dormiu, a
noite inteira vigiando meus ouvidos.