Dias depois, Mateus se arrependeu de não ter ido ao enterro judeu de Menuhim no Caju, mas não conseguia se levantar da
cama. Clemente não foi visitar o amigo, não desejava se encontrar com o passado.
A gente tem que viver pelos cantos e andar se esgueirando pelas ruas porque é
muito difícil você viver sem encontrar o passado. O passado está em todo canto
e a toda hora lembra você que sim ele é passado e que você tem que conviver com
ele. Ou então o passado prega peça e quando você vê está diante do passado,
você, que tanto evitou o passado. Mas quando se pode prever que a gente vai
encontrar o passado, como é o caso, por exemplo, de Clemente que, caso vá
visitar o amigo Mateus, vai dar de cara com o passado que é a irmã dele
Matilde, então o melhor é evitar encontrar o passado.
Quem foi ao enterro judeu
de Menuhim ficou espantado com a mistura de gente que foi velar o homem.
Estavam presentes gente da comunidade israelita, gente da bandidagem que também
tem seu afeto e sua maneira de demonstrar pêsames, gente simples que não se sabia
seu Menuhim, armênio e joalheiro, ajudava e a parentada toda que havia crescido
desordenada e múltipla em vários estados do Brasil.
A loja do seu Menuhim
poderia ter sido investigada pela polícia. Ali existia toda espécie de
transgressão e poderia fornecer o nome de muita gente do crime que era freguês
do velho armênio. Existia um livro ensebado de capa escura onde Menuhim
escrevia o nome de quem lhe vendera a joia, a quantia paga e a possível origem.
Mas ninguém deu nada pelo livro de capa escura de Menuhim. A mulher dele
recolheu as peças, vendeu-as, passou o ponto e mandou dar faxina vigorosa e
definitiva no negócio de joalheria do velho Menuhim e o caderno de capa escura
acabou no lixo junto com outras porcarias que não interessavam à polícia.
Menuhim era um corpo como
outro corpo qualquer. Mas a mente de Menuhim era mente privilegiada que a vida
torceu para o crime, enquanto se fosse empregada a inteligência para o fabrico
de joias, ele seria o designer mais famoso e admirado. Mas Menuhim não queria
saber da fama. Gostava de saber que estava envolvido em algo perigoso, que
tirava a vida das pessoas como pequeno deus perverso.
Agora estava ali, não
entre duas portas, mas entre quatro paredes de madeira, só e abandonado, a
mente criminosa desligada como se desliga a luz ao acabar o expediente. Outra
perversão de Menuhim era gostar das mocinhas pobres, mulatinhas, de subúrbio,
malcheirosas, sujas, mal alimentadas que ele, vira e mexe, e tome vira e mexe,
engravidava e nascia um sarará a quem ele dava nome judeu e pensão por mês,
embora não perfilhasse e negasse a paternidade a quem visse o menino na loja,
um Menuhim condensado e mais escuro, esperto como expatriado, ladino como o
velho armênio.
A mulher de Menuhim de vez
em quando recebia a visita do filho e da mãe do menino a pedir para que a velha
armênia mulher de Menuhim continuasse a pagar comida, roupa e escola do menino
e a velha armênia mulher de Menuhim já nem brigava mais, nem saía pela rua a
gritar palavrões em português, em iídiche e em armênio, expulsando as amantes
do marido que ele deixou entre os bens restantes e testamentários. Agora pegava
o telefone e ligava para o advogado e punha a menina escura e já com outros
filhos de outros homens na linha e o advogado falava alguma coisa tão convincente
ou ameaçadora que elas desligavam o telefone, davam adeus e iam embora
carregando o menino pendurado pelo braço e aos safanões como se o garoto meio
judeu armênio, meio brasileiro de Franco da Rocha ou do Jacarezinho fosse
culpado pela penúria da mãe.
(Um homem é muito pouco. São Paulo: Nankin, 2010)