sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Lavoura humana, poema RCF


O homem é a praga do homem.
As máquinas da secura das fábricas
produzem o comércio das falhas.
Nenhuma lavoura o socorre,
nenhum plantio de gesto.
Meu corpo é fértil
e nele nascem folhagens febris.
Temo flores malditas
como comigo ninguém pode
ou maria vai com as outras.
Tive muitas marias sem vergonha, oh, sim, tive.
O inseticida do fácil pode apodrecer a aurora.
O errático tem suas nervuras,
seiva escura e amarga,
cipós de negação,
solo seco de certezas.


(de O difícil exercício das cinzas, 2014)

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

A guerra, poema RCF


Resultado de imagem para radu belcin

Cheguei a ter uma rosa dos ventos
que apenas floriu
nas cartas que jamais recebi.
Não posso negar que tenho a consistência
de um trem:
meu início pode ser meu fim
(basta que mude de lugar
a fornalha que arde meus loucos motivos).

Cheguei a crer-me medieval e encouraçado:
era apenas a Idade Média da adolescência.
Meu norte é fácil porque depende apenas
de um fonema: a morte.
Tenho nostalgias das pontes
e gosto da idéia de estar
suspenso entre duas margens.

Acordo sempre com a sensação
de não haver dormido.
E o sono, ao contrário da letargia,
tem sido apenas uma pitada errada
do sal da lucidez
que, exagerado,
maltrata antes que dá gosto.

Nenhuma arma
fere mais, mortal e decisiva,
como o fogo-fátuo das sensações.
Passo então o dia no mundo da lua:
Sou Jorge e o Dragão.




(Estrangeiro. Rio: 7Letras, 1997)




quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

O viúvo 17


          

            Onde ficam as minhas portas da percepção? Nos olhos? Então se fecho os olhos, fecho as minhas portas da percepção? Não posso perceber as coisas de olhos fechados? E mais ainda: a percepção é visual? Tenho que ver as coisas para entendê-las? Onde está o poder da minha abstração? As coisas não existem como conceito, tenho de tocá-las? E se as portas da minha percepção estiverem no tato? Ou em órgão interno? Não precisarei ver as coisas para tê-las comigo. As coisas existem no mundo. Para obtê-las, para ter a percepção delas, não necessito de um olhar.
Essas considerações vieram a partir da minha leitura de As portas da percepção, de Huxley. Mas não li As portas da percepção há pouco tempo. Li já há alguns anos. E minha parceira perceptiva foi D. Benedita.
E voltaram as questões depois de um demorado desmaio. E uma dolorosa recuperação. Uma lenta, paulatina, arrastada e doída volta à realidade ou volta à percepção das coisas. Minha percepção não está nos olhos, embora Huxley fale de olhar para as coisas com novos olhos. Todos os livros de auto-ajuda falam em olhar as coisas com novos olhos. Parece anúncio de ótica. Ou coisa tibetana. Há algo de tibetano no livro de Huxley. Ele estava entusiasmado com a mescalina. Fizera experiências assistido por médicos, fazia aquelas maluquices como se já não fosse suficiente ter escrito o que tinha escrito. E não era só ele, porque a época pedia aquela nova sensibilidade e o relato com experiências com drogas já vinha desde o século de De Quincey e de Baudelaire e os artistas buscavam inusitadas formas de apreensão da realidade a fim de ficarem geniais e descobrirem zonas nãotocadasdamente.
Há algo de tibetano em D. Benedita. Mas ela desconhece que sua mente virgem, ainda não desbravada, só pode alcançar o conhecimento pleno se ela modificar-se e abrir suas portas da percepção. Onde estariam as portas da percepção de D. Benedita? Nos olhos fracos e míopes? nas pernas finas e bambas, no sexo desusado e desbeiçado pelo tempo?
O inglês relatava suas experiências alucinógenas com mescalina e propunha, entre inúmeras outras formas de experimentar o inusitado, que nos deitássemos no chão da sala. Tentei deitar no chão da sala para ver os móveis de outra perspectiva. Não descobri nada novo, nada me foi revelado, a sala aqui tomava outra figuração, mas não apresentava nenhuma descoberta espantosa.
Os objetos pequenos se escondem debaixo do sofá. Eu podia perder outros objetos pequenos debaixo do sofá: a pequena preguiça, o pequeno tédio, o pequeno orgulho. Não sou bobo de acreditar que Huxley falava de modo literal. Queria apenas que a gente visse o mundo de maneira distinta e não a rotineira e habitual.
Também meus objetos pequenos – oh eu não falava de modo literal. O orgulho mesmo é tão pouco, ínfimo, tamanho de botão que não sei se o perdi ou mesmo nunca o tive.
Tornei a deitar no chão da sala. Ali estava eu, estatelado, braços abertos, uma estrela humana, sem brilho, o teto sobre meu espanto. O espanto é a palavra de que mais gosto, ou melhor, o espanto é a matéria do incômodo e do meu descobrimento. Se algo não passa pelo meu espanto, não me afeta. O pasmo é que faz existir, o pasmo me dá sentido e conhecimento da realidade.
Em vez de tomar mescalina, eu tomo pasmo.
Havia poeira nos móveis, uma cadeira estava com o pé descascado e por aí vai. Não era isso que Huxley chamava de as portas da percepção.
Eu não ia reclamar com D. Benedita, dizer, olhe, deitei aqui pra ver o mundo de forma diferente e descobri que a senhora varre pelos caminhos, não limpa direito os móveis ou coisa parecida. Era uma mistura muito exótica e incompatível entre Huxley e sua mescalina e D. Benedita e seu pano úmido com lustra-móveis.
Nada de nova sensibilidade. Não houve pasmo, não houve descobrimento. De repente tudo sumiu. Anoiteceu na minha porta. Desmaiei. Quando abri os olhos, apareceu o carão velho e vincado de rugas de D. Benedita.
O que faz D. Benedita nas portas da minha percepção?
(do livro O viúvo. Brasília: LGE, 2005)

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Queimada, poema RCF





A queimada
coloca a terra de cabeça
para baixo
deixando à mostra as raízes
retorcidas em seu gozo de fogo.

O fogo vai arando
com sua foice de línguas,
foice de lâmina mole
mais cortante que fio da navalha.

O campo todo é plantação
de navalhas.
Estou só, perdidamente só,
olhos incandescidos,
na visão fervente do inferno na terra.

Olha bem, são as chamas sentinelas
que, esgalgadas,
vão se esmiuçando
na tropa vermelha
da terra arada
pelos bois
de morte e fúria
que são a combustão
do homem desesperado.

Tudo se amiúda
e cobrem a terra
a coivara
e as sementinhas
negras do nada
das cinzas.
Há silêncio
e o crepitar atrasado
do borralho
– é a terra que se asfixia
dos restos de si mesma
com a capa de chuva negra
que desveste
quando deveria cobrir.


(do livro Terratreme, edição da Secretaria de Cultura do DF, prêmio Bolsa Brasília de Literatura, 1998)


segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Concreto, poema de RCF

miró





O imenso ventre roliço de ferro,
a batedeira cujas entranhas
são feitas de pedra e vômito de cimento,

ainda moles, no gestar do ato,
no desenho futuro da casa fixa,
este gesto não é o gesto de viver,

mas a sonolência dos impertinentes,
a insensatez das falésias que se abismam
ou o corte abrupto dos tratores

no exato ato de construir não mais a casa,
e, sim, a vida, cheia de cortes e abismos,
falésias ao café da manhã,

dormências de ventres roliços de pão e vazio,
as linhas da casa não projetada na própria vida
a casa aqui não é o útero,

além existem as estradas com suas curvas precipitadas,
desejos de abismos, vertigens de cimento e asco,
a imensidão do nada na batedeira

que mistura o risco de viver
e o traçado da casa que virá
ainda é apenas o projeto de vida,

sendo germinada no útero de ferro,
cimento, cascalho e náusea.