Onde
ficam as minhas portas da percepção? Nos olhos? Então se fecho os olhos, fecho
as minhas portas da percepção? Não posso perceber as coisas de olhos fechados?
E mais ainda: a percepção é visual? Tenho que ver as coisas para entendê-las?
Onde está o poder da minha abstração? As coisas não existem como conceito,
tenho de tocá-las? E se as portas da minha percepção estiverem no tato? Ou em
órgão interno? Não precisarei ver as coisas para tê-las comigo. As coisas
existem no mundo. Para obtê-las, para ter a percepção delas, não necessito de
um olhar.
Essas considerações vieram a
partir da minha leitura de As portas da
percepção, de Huxley. Mas não li As
portas da percepção há pouco tempo. Li já há alguns anos. E minha parceira
perceptiva foi D. Benedita.
E voltaram as questões depois
de um demorado desmaio. E uma dolorosa recuperação. Uma lenta, paulatina,
arrastada e doída volta à realidade ou volta à percepção das coisas. Minha
percepção não está nos olhos, embora Huxley fale de olhar para as coisas com novos
olhos. Todos os livros de auto-ajuda falam em olhar as coisas com novos olhos.
Parece anúncio de ótica. Ou coisa tibetana. Há algo de tibetano no livro de
Huxley. Ele estava entusiasmado com a mescalina. Fizera experiências assistido
por médicos, fazia aquelas maluquices como se já não fosse suficiente ter
escrito o que tinha escrito. E não era só ele, porque a época pedia aquela nova
sensibilidade e o relato com experiências com drogas já vinha desde o século de
De Quincey e de Baudelaire e os artistas buscavam inusitadas formas de
apreensão da realidade a fim de ficarem geniais e descobrirem zonas
nãotocadasdamente.
Há algo de tibetano em D.
Benedita. Mas ela desconhece que sua mente virgem, ainda não desbravada, só
pode alcançar o conhecimento pleno se ela modificar-se e abrir suas portas da
percepção. Onde estariam as portas da percepção de D. Benedita? Nos olhos
fracos e míopes? nas pernas finas e bambas, no sexo desusado e desbeiçado pelo
tempo?
O inglês relatava suas
experiências alucinógenas com mescalina e propunha, entre inúmeras outras
formas de experimentar o inusitado, que nos deitássemos no chão da sala. Tentei
deitar no chão da sala para ver os móveis de outra perspectiva. Não descobri
nada novo, nada me foi revelado, a sala aqui tomava outra figuração, mas não
apresentava nenhuma descoberta espantosa.
Os objetos pequenos se
escondem debaixo do sofá. Eu podia perder outros objetos pequenos debaixo do
sofá: a pequena preguiça, o pequeno tédio, o pequeno orgulho. Não sou bobo de
acreditar que Huxley falava de modo literal. Queria apenas que a gente visse o
mundo de maneira distinta e não a rotineira e habitual.
Também meus objetos pequenos –
oh eu não falava de modo literal. O orgulho mesmo é tão pouco, ínfimo, tamanho
de botão que não sei se o perdi ou mesmo nunca o tive.
Tornei a deitar no chão da
sala. Ali estava eu, estatelado, braços abertos, uma estrela humana, sem
brilho, o teto sobre meu espanto. O espanto é a palavra de que mais gosto, ou
melhor, o espanto é a matéria do incômodo e do meu descobrimento. Se algo não
passa pelo meu espanto, não me afeta. O pasmo é que faz existir, o pasmo me dá
sentido e conhecimento da realidade.
Em vez de tomar mescalina, eu
tomo pasmo.
Havia poeira nos móveis, uma
cadeira estava com o pé descascado e por aí vai. Não era isso que Huxley
chamava de as portas da percepção.
Eu não ia reclamar com D.
Benedita, dizer, olhe, deitei aqui pra ver o mundo de forma diferente e
descobri que a senhora varre pelos caminhos, não limpa direito os móveis ou
coisa parecida. Era uma mistura muito exótica e incompatível entre Huxley e sua
mescalina e D. Benedita e seu pano úmido com lustra-móveis.
Nada de nova sensibilidade.
Não houve pasmo, não houve descobrimento. De repente tudo sumiu. Anoiteceu na
minha porta. Desmaiei. Quando abri os olhos, apareceu o carão velho e vincado
de rugas de D. Benedita.
O que faz D. Benedita nas
portas da minha percepção?
(do livro O viúvo. Brasília: LGE, 2005)