Pediram-me um carta para o poeta a fim de incluí-la em livro. Eis a carta:
Caro poeta,
Leio-o e releio-o e não recordo de você ter comentado
de que somos uma contradição bípede. Um ser metafísico pragmático, um religioso
pagão. Tão metódico, tão “científico”, você também era frágil como seu corpo.
Sua neurastenia não tinha ordem, não era controlada pela matemática. Ao
contrário, a neurastenia nasce nas dobras da paixão. Além dos temas seus
recorrentes, pergunto-lhe: nunca considerou a presença da temática de Deus e o
diabo em sua poesia? Ora, você me responde que era ateu e marxista. Nada disso
impede de trazer dentro de si o sertão onde os dois se desafiam. Eu diria que,
mesmo antes mesmo de haver sertão, em Espanha, que tanto você amou, eles lá
inquisitorialmente se enfrentaram. Ouso afirmar que você foi para Barcelona
porque sabia que lá retornava à origem da metafísica que negou, mas que sempre
existiu em sua poesia. Onde está a bainha onde se coloca uma faca só lâmina? E
o que dizer do auto de Natal Morte e Vida
Severina? Não foi buscar o modernismo de Miró, foi atrás de Deus e do Diabo,
da luta fratricida e eterna entre razão e emoção, embora eu desconheça se o
diabo é a razão ou se Deus é a emoção.
Tudo isso é desnecessário
responder porque sua poesia é maior do que qualquer pergunta e mesmo superior a
qualquer resposta. Deus e o diabo já o acossavam na juventude. Lembro-me do
relato de Lêdo Ivo, que aos vinte ou vinte um anos, foi visitá-lo no hospital
psiquiátrico em Recife, antes de os dois se tornarem grandes poetas. Lêdo,
arrebatador, vibrante, louco pela luz e alegria das praias de Maceió e você
atraído pela mesma luz de duzentas janelas abertas, só que a luz de Lêdo era
vida e a luz sertaneja era morte. A do alagoano era luz marítima, salgada e
abundante, a sua era luz gretada, feita de barro, uma luz descarnada.
Certa vez você deixou
escapar que mesmo medindo com régua a poesia, deixava que o improviso o
tomasse. Queria passar uma imagem de construtivista e os homens de razão (você
foi mais Valéry que o próprio Valéry) elaboram previamente seus atos, mesmo que
sejam atos poéticos. No fim da sua vida, tomei-me de compaixão por sabê-lo
cego. Viveu os últimos anos de sua vida nas sombras que tanto odiava, nas
penumbras que só levam à solidão dos sentimentos distorcidos, ambíguos, amargos
e turvos.
O diabo é o latifundiário,
o capitalista, o dono das terras, o industrial. Mas não somente. O diabo também
eram as ideias fixas da faca sem lâmina. O diabo era o próprio cenário, o
sertão que o invadia. O sertão está em todos os lugares, disse seu companheiro
de sertão Guimarães Rosa. Os sertões são vários sertões. O sertão de Rosa, o
seu sertão, o sertão baiano e messiânico de Euclides.
Embora na
Venezuela existam los llanos, na
província central do país, que é uma região seca, de ganaderia e penúria, era difícil para meus alunos absorverem o
sertão sem til. De origem ibérica, era fácil entender a literatura de cordel,
pois lá também havia algo assemelhado, mas o conceito de sertão, sabemos nós, é
algo maior que a geografia.
Eu não vejo na
literatura de hoje nada mais avançado que sua produção dos anos 50 e 60 do
século passado. A grandeza de sua poesia é uma lição para outros poetas
brasileiros. E mais: poucas expressões da poesia internacional têm a sua
grandeza. O diabo – e aí Deus nem aparece – é que você escreve em português. Você
poderia ter sido nosso primeiro prêmio Nobel.
Vicejam por aí
velhos modismos, requentadas vanguardas, descobertas da roda poética que já são
centenárias. Nunca estive com você, nem nunca me interessei em vê-lo. Lamento
você não estar mais entre nós. Bastava-me e basta-me sua poesia que o fará
atravessar os séculos.
Com
um abraço,
Ronaldo