sexta-feira, 7 de junho de 2024

Desfazimento


 

 

 


 

 

Desfazem-se os tempos ásperos,

mas também se desfaz a ternura.

Desfaz-se o coração mole

e até mesmo o carinho

que é o amor em forma de mão.

Desfaz-se tudo,

nada perdura,

só o minuto murmura

em seu esplendor de gota

que logo se esturra.

 

Desfaz-se a voz

que se dilui

no córrego do vento.

Desfaz-se a rude estrada,

a pedra dura.

 

 

 

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Os amantes, poema

 


 

 


 

 

 

O corpo é tão presente

que a alma se regala.

Que bom andar pelas calçadas

contaminados pela boa doença:

o estar febril do outro.

Nossos corpos

estão expostos à combustão.

Cada toque inflama,

cada carícia põe a mão no fogo.

Para os que amam

toda carne é viva.

 

terça-feira, 4 de junho de 2024

Balaiada, novo romance

 





Caxias, Maranhão

 

Atravessar aquele umbral da porta da fazenda significava deixar para trás três cidades, ingressar no passado como se tudo o que vivera fora um sonho do qual acordaria ainda sem distinguir vigília e devaneio. Voltava a Macaúbas da minha infância, os campos a perder de vista, as moendas, os trabalhadores no eito, as plantações de milho, de algodão.

A raiva do meu pai era severa, embaraçosa. Temia beijar o homem iracundo ou ter medo do pai amoroso. Este último me ensinava a criar bicho de seda, orgulhoso da semente de amoreira que fizera vir de Portugal, a cultivar entre nós mais que a transmissão do conhecimento, senão tecer a cumplicidade da descoberta do mundo.

À noite, meu pai montava o cenário para os músicos amigos dele. O dr. Morizot na flauta; no piano, o Pinho Gonçalves; no violino, o boticário Arlindo e outros mais, todos servidos de vinho que meu pai mandava trazer do Porto por intermédio dos irmãos Guimarães. Da baixada, vinham os jaçanãs e os queijos de São Bento.

Meu pai não era tão alto. Quando me tornei adulto, me dei conta que meu pai era mais baixo que eu, parecia que me roubavam parte da minha infância, com ela parte do meu pai. De barba cerrada, os bigodes grandes, retorcidos, a fragrância de água de cheiro que passava após tomar o banho frio com um aparato que mandara construir para que, de dentro da bacia pendurada, saísse um fluxo de pingos contínuos e gelados.

Vestia-se com aprumo naquele calor infernal de Caxias. Relaxava um pouco na Macaúbas. Calçava as botas, punha camisa branca sem gola, colete com quatro bolsos –, a maior invenção da humanidade para meu pai não fora a roda, mas o bolso – e neles punha de tudo que podia lá caber. Em Macaúbas, andava armado. Minha mãe não gostava de que me mostrasse arma.



(Balaiada. São Luís: Academia Maranhense de Letras, 2021)


À venda

AMEI

WhatsApp (98) 9 82832560

Geral (98) 3251 3744

E-mail: amei.osfl@gmail.com


segunda-feira, 3 de junho de 2024

Rio de ferro, poema

 


 

 


 

 

 

Vai o rio de ferro

com os peixes sentados.

Os leitos férreos

até sobem montanhas.

 

São sempre perenes

e não sofrem com seca

ou a inundação dos ferros.

Jamais chegam ao mar,

mas despacham seus peixes

nas estações da margem.

Também carregam minérios

ou grãos em seu leito de ferro

 – dois dormentes sempre acordados –

e seguem em frente obcecados

como o louco por sua loucura

e o ímã pela sua limalha.