quinta-feira, 7 de março de 2024

O acre negócio de viver, poema

 







 

 

 

 

 

Este ano melhorei minha safra;

em outros, me avinagrei.

Então vem o malefício da dúvida

e daninha a semeadura.

Ando por aí fora de época,

no acre negócio de viver.

Depois pondero: nada a reclamar.

Me irrigo,

as palavras sem caroço,

ainda me colho.

Cantarolo solo árido

e brotam filhos na colheita.

A cada semana podo minhas unhas

e a cada mês os cabelos.

Sempre estou de muda.

 

 

 

 (A invenção do passado. Rio: 7Letras, 2022.)


quarta-feira, 6 de março de 2024

Tristeza, poema RCF





Sou um sujeito antes só
que mal acompanhado ando de mim.
Quis dar vizinho à estranheza:
ando baldio e terreno.

Ser outro,
anônimo ou todos
como numa lista telefônica.
Aqui é preciso um pouco de margem
para sanear as vontades.
A mão de fevereiro é devassada.
O pior motor é o da memória:
apenas range os dentes de popa
que não se usam mais.
Tristeza é o nome antigo de Deus.

 
(do livro Eterno passageiro, Ed. Varanda, 2004)


imagem retirada da internet: lucien freud

terça-feira, 5 de março de 2024

Cine Éden, poema RCF



No cine Éden, hollywood da Rua Grande,
a leste de coisa alguma,
o mundo tinha a dimensão de
seis metros estirados de pano.

As janelas abertas deixavam ver o céu
como se fosse a tela e os astros
representassem piscando os olhinhos
de gás das estrelas.

Cleópatra se sentava na cadeira de madeira
depois de servir o jantar aos patrões.
E Marco Antônio,
o filho da puta do Marco Antônio,
tinha as mãos calosas de pedreiro.

Ó tempo das imagens fugidias,
o mundo como um grande rolo,
a lata de lixo da História
estava cheia de papel amassado dos bombons Pippers.
Que viveremos nós depois do
the end da História?


( Eterno passageiro, Ed. Varanda, 2004)



domingo, 3 de março de 2024

A peste em Vieira na ilha do Maranhão 4


Cientistas descobriram a origem da Peste Negra - ZAP


       Foi até a casa do Enforcado. Recolheu o menino atoleimado para sua cela, serviu-se de um índio para que socorresse o inválido em suas necessidades de filho de Deus e zelasse por limpeza e alimentação. Cinco dias depois, o Espanhol era enterrado, comido pela peste, tão negro que parecia um homem da Guiné.

            Além do isolamento, da proibição de festas coletivas e de gente massuda unida e algazarrenta, a Câmara, em regime de urgência, contratou enfermeiros leigos, carros de boi para levar os defuntos, coveiros imperitos e outros funcionários que chamou de vaga-lumes por trabalho intermitente. Padre Ambrósio usava seu método japonês. Aconselhou a todos que visitava ou encontrava pelos caminhos que trajassem vermelho. Os reis de França haviam se vestido de rubro e passaram incólume pela peste negra.

            Na ausência de botica que providenciasse remédio que medicina alguma tinha descoberto para a bexiga, Rui fazia uso de cascas, resinas, xaropes, gomas, ervas, unguentos e outros medicamentos dos gentios. Usava pau-tacagé para adstringir as vesículas, óleo de copaíba para cicatrizar as chagas, juticuçu como antipirético, ipecacuanha para vomitório, manjerioba na disenteria, caso fosse necessário, e guembébê-guauçu se houvesse hemorragia.

         No meio do desânimo – a peste não arrefecia –, do pavor do contágio que gerava desconfiança até no aperto de mão, do sibilo desaforado do vento nas ruas desertas e atoleimadas, dos olhos esgueirantes por trás das rótulas e das rezas encarniçadas para expulsar a bexiga como punição divina, havia lugares distintos e histéricos. O puteiro de Antonieta a Francesa estava mais cheio do que nunca, num frenesi de corpos e suores nunca visto. 


(do livro Vieira na ilha do Maranhão. Rio: 7Letras, 2019)