sábado, 6 de abril de 2019

Farinha, poema de Matadouro de Vozes








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Tudo o que existe se esfarinha.
Tudo que é férreo
um dia se corrói
que é outra forma de farinha.

A memória
tem mais fermento das ilusões
que trigo da razão.

Meus olhos são dois buracos negros.
Nada me desassossega
mais que o sossego.

















A máquina das mãos por Igor Fagundes

A medida de um palmo




Publicado no jornal Rascunho

Ainda que porventura fora dos perímetros de intenção do autor, aludir à máquina do mundo de Camões e Drummond consiste em um dois caminhos possíveis para nos aproximarmos do livro de poemas "A máquina das mãos", de Ronaldo Costa Fernandes. Não apenas pela presença, quiçá proposital, da palavra "máquina" no título. Sobretudo porque, a cada página, participamos de uma meditativa mundividência, que teria tônus metafísico ("Um dia me cansarei de ser/a nota dissonante/ e abandonarei a lição de casa,/ a lição da rua, a lição da vida,/ Oh, Deus, todas as lições que nunca aprendi") se, em contrapartida ao etéreo e elemental do autor de "Os lusíadas", não houvesse duas mãos(pensas)e um sentimento do mundo.
Se a poesia em questão não contasse nos dedos algum senso crítico e alguma ironia que rói a melancolia encardida nas unhas. Se, enfim, uma - assim chamada- "alma pequena" não assistisse à produção em série de sua inoperância: "Não contente com sua oficina de erros,/ criou em mim uma máquina de desconcertos".
A máquina perfeita da razão, a pressupor uma existência organizada segundo leis bem definidas, finalidades manejadas por uma causalidade e eficiência transcendentes, seja intelectualmente, seja divinamente, rui para dar vez à "vida como carro desgovernado", "costura de fio sem meada" em meio à qual as linhas inscritas e cruzadas na palma judiariam de toda crença em uma travessiaprescritível e, sob quiromantescifras, por elas esclarecida ("Quem inventou a medida do palmo/ queria ter o mundo em suas mãos.// As palmas me causam horror: o ato vazio de nada pegar").
Ronaldo Costa Fernandes faz da imperfeição de sua máquina impulso para uma escrita que, engenhosa, anseia o perfeito, isto é, a plenitude de um poeta senhor de suas impressões digitais (para não dizermos, mediante um desgastado fonocentrismo, senhor de sua voz). De pulso forte para cavar "fundo até aparecer o osso do mundo", de modo que não somente o termo "máquina" venha assumir relevância nas referências a Drummond e a Camões, mas o próprio vocábulo "mundo" em sua recorrência lexical e inquietante: " o mundo deve ser muito importante/ pra dar muxoxo pra gente/ ou não responder ao que a gente pergunta.// Ontem inventei outro mundo, mais cheio de vermes e de tarântulas,/ os coelhos gostam de mastigar o infinito".
Por manusear o que não tem limite, o que não encontra fim e, assim, desafia o empenho das fábricas do pensamento, bem como o desempenho das programações, o punho de Fernandes, à revelia do maquínico, se dedica a compreender incompreensões com a mesma força que incompreendecompreensões; à indagação sobre qual rumo perseguem os maratonistas e qual sem-rumo conseguem os suicidas; à exclamação do crematório dos fornos de churrasco; à amostragem sem auto-vitimização dos pecados pendurados em carnes de açougue; à assunção de tudo o que, finito, flagra a limitação dos dedos fincados no teclado e na tinta impressa das letras, metonímicos e metafóricos dos seres humanos, que "não têm tato, só conhecem o tagarelar dos acenos". O poeta ensaia sua poesia quando falha o projeto de dizer, quando equivocada a redução da trama do viver às sistemáticas forjadas pelo homem:

"Meus dedos demoram a pensar.
Têm memória curta.
Têm a surpresa do estalo,
mas não regulam bem,
cada qual em seu drama:
a polegada de vida medida,
o fura-bolo do desatino,
o maior-de-todos os
descompassos,
seu-vizinho do medo de viver
e a vida mindinha que se leva".

A lírica de descuidos com que este livro cuidadosamente se faz alça-o a uma claridade paradoxal, enquanto coerente em seu ofício de dar-nos mais clareza quanto aos paradoxos que subsistem no homem e regem sua inventividade- senão redentora, sentenciosa da impunidade com a qual somos coniventes e viventes quando alimentados pelo estremecimento nosso de cada dia.
A partir de tamanho tremor (nunca temor) imagético, o poeta verte seu verso e é profícuo na proeza de não deixar que a articulação soberba de imagens a priori desconexas, características da poesia, caia na armadilha do "incongruente como fórmula" ou do fluxo compulsivo que só prevê vertigem sem sentido, e não inverso: o sentido com vertigem, a oscilação entre um e outro, a impedir aquele enfadonho hermetismo onde as possibilidades de acesso e interpretação se encarceram. Na obra "A máquina das mãos", a fartura de figuras de linguagem ("Os cabelos das ondas/ necessitam de cachos para espumar") não insinua exibicionismo infértil, houvesse a fatura de um pensamento regente, consciente da pertinência de suas escolhas formais e estilísticas, zeloso de uma poética que, na contramão de um dito plenamente realizado de significados, conhece a diferença entre "dizer possibilidades e nada dizer". Habitante de uma terceira margem, não vê, por outro lado, diferença entre o beletrismo conservador-tecnocrático e a ditadura da anarquia verbal, para a qual liberdade estética é antônimo de responsabilidade artística e, quando muito (ou pouco), só se quer mesmo responsável pela geração espontânea do novo natimorto.
Não se encontrando "em nenhum canto do triângulo das dúvidas", vive "de ponta-cabeça" este poeta "cansado de pisar [ou, no caso, apalpar] a própria sombra".
Por isso, ele a compartilha conosco e, ao revés, irradia uma oblíqua luz de dentro e para dentro de seus (nossos)- não mais drummondianos, mas personalissimamente universais- claros enigmas. Mesmo que duvidoso das linhas da palma e da medida de um palmo, merece o dadivoso de todos os aplausos.



Igor Fagundes é poeta e crítico literário.
 

Se correr o bicho pega..., poema RCF







Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.
A frase popular virou nome de peça.
O teatro ficava perto de um viaduto.
Eu tinha que passar pelo viaduto quase todos os dias e via o letreiro da peça.
E morria de medo, diabo, então não tem salvação.
Mal eu sabia que o bicho era eu.


 
(do livro Memória dos porcos, Ed. 7Letras, 2012)





quinta-feira, 4 de abril de 2019

A voz do vazio, poema RCF


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A voz se dobra
e não consegue falar com ele mesmo.
Às vezes, viciado de si,
busca a janela para ver lá fora
as bocas abertas da paisagem.
Quando o chão range
é porque a pele do piso foi ferida.
Os vidros não gostam de incongruência,
por isso são tão rígidos e sem humor.
As mãos se acostumaram a chorar.
Se tomam de uma melancolia branda.
E como não conseguem pegar o vazio
espalmam a mão num espanto.


(do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)


quarta-feira, 3 de abril de 2019

O vento marítimo dos edifícios, poema RCF


Ilustração | Jorge Roa






De meus cabelos sopram os ventos mais agudos,
as  cordilheiras mansas e as planícies do homem.
De tal sorte, estou com os ossos oxidados
que, ao sair de casa,
não posso suportar o vento marítimo dos edifícios.


Ando pela rua torta,
o corpo cheio de musgos
e as pernas cobertas de sacrifícios.
De tal monta é meu teorema
que me penitencio na igreja de prata
que pende do meu pescoço.


Os porteiros escoltam as cargas e descargas
de gente miúda que alisa as calçadas
ou toma corpo na fauna dos carros
ou floresce na estufa dos homens nos ônibus.


Mundo desfeito de inutilidades,
cozido na salsa do mormaço, a cuspir prédios,
descaso e a puerícia dos cadáveres.

Roço a existência.




(do livro O difícil exercício das cinzas. Rio: 7Letras, 2014)


imagem: Jorge roa

terça-feira, 2 de abril de 2019

O motor do coração, poema RCF


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O homem traz dentro de si
a gaiola do pulmão,
que, com seus talos de ar,
deixa escapar um sopro,
que voa e se dissolve na boca.

Outra gaiola do homem
é o motor do coração,
com sua jaula de afetos,
onde ela guarda os pássaros perdidos
que a dor insiste em ensaiar
o trinado dos pios miúdos.

( O difícil exercício das cinzas. 7Letras, 2014)

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Entrevista Memória dos Porcos







ENTREVISTA AO JORNAL O ESTADO DO MARANHÃO





P: O que influiu ou modificou em sua vida a permanência tanto tempo fora do Brasil dirigindo o Centro de Estudos Brasileiros em Caracas, na Venezuela?
R: Há uma coisa curiosa, para mim, na minha estada em Caracas. Primeiro, o fato de passar nove anos na minha vida. Ora, durante nove anos, estando no Brasil ou fora dele, você se modifica, vive novas experiências. Outro dado é o contato com a língua. Muito próxima do português me abriu um universo de autores e de imaginário que desconhecemos aqui. Tentei entender o comportamento mental de um povo que idolatra a terra-mãe, a Espanha, ao contrário de nós em relação à Portugal, tem outra música e outra História. Se, ao mesmo tempo em que me ensinou muitas coisas, também me fez entender melhor o Brasil. Mas confesso que houve um momento, principalmente nos últimos anos que embotei, não conseguia mais escrever, misturava as duas línguas, escrevia não propriamente num portunhol, mas numa língua portuguesa que tinha a sintaxe espanhola.
P: Você chegou a participar da vida cultural venezuelana?
R: Dava aulas na principal universidade do país, a Universidad Central de Venezuela, a USP de lá. Publiquei uma novelinha em espanhol pela Monte Ávila Editores, escrevia artigos para jornais e revistas, mas sabia que aquilo era provisório, passageiro (não é à toa que o título de um dos meus livros de poesia se chame Eterno passageiro). Poderia ter sido esquecido lá, mas sabia que nunca seria um autor de língua espanhola porque não era um Nabokov ou um Conrad que, um sendo russo e outro polonês, estão hoje como grandes autores da literatura de língua inglesa. Por isso voltei.
P: Você publica poesia relativamente tarde. Antes você era visto como prosador, autor de livros como João Rama, prêmio APCA de Revelação de Autor, e de O morto solidário, com o qual você ganha o Prêmio Casa de las Américas. O que o fez publicar poesia?
R: Meu primeiro livro de poesia foi Estrangeiro, de 1997. De lá para cá são seis livros publicados. Não vamos confundir publicação com produção. Sempre escrevi poesia. Creio que tenho mais livros de poesia do que de ficção. Só que pensava que ainda não estava maduro para publicar poesia. Esperei o tempo exato, penso eu, da maturação. A prosa requer fabulação e a poesia me exige mais ritmo, musicalidade e construção metafórica. Não ia passar a vida inteira sufocando o poeta.
P: O que prêmio da Academia Brasileira de Letras para o livro A máquina das mãos representou para você?
R: Quando se ganha um prêmio, corre-se para saber o júri. E o júri era um júri que eu respeitava. Além do prêmio em dinheiro – sempre bem vindo –, havia o reconhecimento de um trabalho. O poeta vive de migalhas, de uma distribuição quase artesanal, e quando recebe um reconhecimento sente que o trabalho não foi em vão. Contudo, acredito que os prêmios vêm e vão, o que fica com o tempo é a qualidade da poesia. Ao longo da história da literatura, muitos autores que não foram premiados sobrepujaram os premiados. Que prêmio ganhou Sousândrade?
P: De que fala Memória dos Porcos e o porquê deste título?
R: Geralmente as pessoas fazem essa pergunta (sobre o tema) quando se trata de prosa ficcional. Mas não fujo da pergunta e creio mesmo que valha a pena. Os livros de poesia têm a especificidade de tratar do humano, da condição humana, do estar-no-mundo. E Memória dos Porcos não foge à temática geral da produção poética. Quanto ao título, tem sido uma pergunta recorrente. De uma maneira geral não gosto de explicar meus títulos pois creio que os leitores podem ter uma interpretação melhor daquela que pensei. Mas posso dizer a minha, sem excluir a do leitor: Memória dos Porcos tem a inspiração inicial, no título, de usar a palavra memória que é recorrente na literatura brasileira. Os porcos ficam por conta um pouco do excluído, do não aceito ou daquilo que não seria considerado literário. Mas, ao fim de tudo, é apenas um título como outro qualquer.
P: Uma pergunta clássica mas que acredito tem que ser feita para os autores. Você poderia explicitar algumas de suas influências?
R: Geralmente, quando o autor ouve esta pergunta de imediato relembra os escritores que leu, admirou, procurou aproximar-se ou repeti-los. Eu diria que esta é a primeira e talvez a mais importante. Mas há outras influências que não são aparentes. A segunda influência seria a própria cosmovisão do autor, a maneira de encarar não só a literatura como a realidade que o cerca. Nesse segundo caso de “influência” estariam desde os filmes que o impressionaram, as músicas e compositores que admira e outras mídias e mesmo uma “filosofia” de vida. No terceiro caso de “influência”, eu colocaria as chamadas por mim de “influências por negatividade”, ou seja, o autor é “influenciado” por aquilo que ele despreza. Esta última “influência” é uma afirmação por intermédio de uma negação. Ele rejeita determinado comportamento, determinada escola, determinado estilo, certo maneirismo aqui, muito beletrismo ali, enfim, toda uma gama de literatura que não entra em sua Paideia, todo um mundo de negatividade, mas contribui para sua afirmação e sua positividade.