quinta-feira, 15 de outubro de 2015

O nobre sequestrador, Antônio Torres


Duguay-Trouin com o Rei Louis XIV

O sequestro do Rio


Ronaldo Costa Fernandes


A tomada do Rio de Janeiro pelo corsário francês René Duguay-Trouin, que, durante dois meses manteve a cidade sob seu jugo em 1711 e exigiu uma fortuna para devolvê-la, é o tema do romance do escritor Antônio Torres intitulado O nobre sequestrador.
Antônio Torres é um velho lobo do mar, para usar linguagem marítima. Autor maduro, de larga trajetória, Torres envereda pelo romance histórico de maneira original, usando vozes diversas, recursos narrativos densos e variedade de tempo e espaço.
A diferença entre pirata e corsário deve ser estabelecida. O pirata é um bandido por contra própria, um empreendedor privado; o corsário é um bandido subsidiado pelo rei, um empreendedor estatal. Se os capitais para a empresa são diversos, o objetivo final é idêntico: o roubo, a pilhagem, a destruição de cidades. René Duguay-Trouin manteve a cidade do Rio de Janeiro sitiada e só a libertou em troca de vinte milhões de cruzados, mais ouro, prata, 27 canhões, 1167 barbatanas de baleia, 750 volumes de lonas, cem caixas de açúcar, duzentas cabeças de gado e inúmeras outras mercadorias e objetos. O corsário, em nome de um direito internacional de cabeça para baixo, de uma Europa em permanente litígio e a América e os mares vistos como terra de ninguém, vagava pelos oceanos com o aval do Rei Luís XIV.
O nobre sequestrador, em sua primeira parte, excetuando um exórdio carnavalesco, onde mistura presente e linguagem coloquial brasileira com o século XVIII e a história ainda a ser contada do personagem que ele elegeu, é uma narrativa realista, colada ao texto das memórias verdadeiras de René Duguay-Trouin. Está cheia de dados, números, referências a documentos, presa a datas e fatos precisos. Nesta primeira parte, quem narra a história é o próprio Duguay-Trouin. Conta-nos não apenas a tomada do Rio de Janeiro como sua juventude e ingresso na vida de homem do mar, aventureiro, filho da cidade conhecida pelos seus corsários: Saint-Malo. Ainda nesta primeira parte, o francês, ou melhor, a estátua do francês visitada pelo narrador do romance, trezentos e tantos anos depois, de uma perspectiva histórica cronológica impossível, mas verossímil como ficção, conta-nos os feitos de sua vida aventureira.
Na segunda parte, surge uma mistura do velho narrador René Duguay-Trouin e um narrador onisciente que atualiza a história. Este narrador relata o aparecimento da curiosidade do pesquisador brasileiro em relação ao corsário, conta suas viagens à França em busca de informação complementar, sua demissão do trabalho de publicitário ( e divagações ligeiras sobre a velhice ). Retorna ao relato, agora através de um diário impessoal, narrado em terceira pessoa, com a descrição simples das ações para a tomada da cidade do Rio de Janeiro.
Uma terceira e última parte vem se acrescentar: o narrador passa a ser a própria cidade. Ofendida, machucada, ressentida, violentada.
Este vaivém narrativo enriquece o romance, atualiza-o, dá-lhe um viés da pós-modernidade: metaficção historiográfica. Outra face contemporânea dá-se na ucronia ( “tempo histórico maluco, em que Júlio César duela com Napoleão e Euclides consegue demonstrar o teorema de Fermat” – Umberto Eco ). Revela-se principalmente no fato de a estátua dialogar com o narrador-investigador da vida corsária de René Duguay-Trouin, a mistura de tempos diversos e da visão de apreender a História como mais um texto. Mas há, contudo, um dado inquietante: os narradores insistem em perpetuar a memória do corsário. Não desfazem ou humanizam a figura do personagem histórico. Esta é uma questão que vale a pena ser levantada do ponto de vista mesmo do autor: por que a preocupação de manter a imagem de herói para o corsário? Ora, René Duguay-Trouin é um bandido real, um saqueador, pode ser herói para a França, mas não há heroísmo nenhum no fato de nós, brasileiros-cariocas, termos sido saqueados por um francês.
Antônio Torres, porém, é um mestre da narrativa. Com pulso forte, pena da galhofa e ironia sem melancolia, Torres nos sequestra para sua aventura narrativa e nos fascina com dois mundos: Saint-Malo e Rio de Janeiro. E lança-nos em dois tempos: passado e presente convivendo no tempo histórico da trama.

imagem retirada da internet:Duguay-Trouin com o Rei Louis XIV