(trecho do romance O apetite dos mortos, em que se conta a suspeita de o escritor Bernardo Elias ter assassinado, nos anos 40, a professora Miss Hogarth, norte-americana que, junto com a atriz hollywoodiana Joan Lowell, foi morar em Goiânia)
Quem dera aula para meu
pai em sua cidade foi um negro da Martinica. O homem, franzino, de pulmões
fracos, viera trabalhar para o Lloyd e cuidava da carga e descarga de
mercadorias e mantimentos no porto. Estudara em Lyon, tinha um francês sem
sotaque martinicano, fumava cigarrilha, vestia-se como se estivesse na Europa,
com roupas escuras e pesadas. Já o inglês era uma língua que meu pai tentou
aprender sozinho e, embora fosse um excelente autodidata, não avançara muito
além das primeiras lições. Por isso, a conversa entre ele e miss Evelyn Hogarth
era toda em português. Miss Hogarth viera para a escola das freiras para dar
aula de inglês. Era uma americana de Ohio que se mudara para Hollywood a fim de
ser atriz. Depois de perambular por espetáculos de revista musical, pontas em
filmes menores, desistiu do palco e veio atrás de Joan Lowell, que se mudou
para Anápolis. Miss Hogarth era baixa, roliça, de cabelos negros e olhos azuis,
a pele branquíssima, chamava meu pai de Mrs. Dick Brown e meu pai não entendia o
porquê do apelido, sorria sem jeito, avaliava a roupa apertada de Miss Hogarth
e, antes de saber que ela fora atriz, imaginava que miss Hogarth provinha de
alguma congregação católica que abandonara depois do noviciado.
Não era a primeira nem
seria a última americana a se mudar para a cidade goiana. Mary Martin, atriz de
Chaplin, trabalhou com ele em A busca do
ouro, comprou uma fazenda no interior e, embora não criasse nenhum animal,
e muito menos plantasse uma couve, se considerava uma fazendeira. Não abandonou
Hollywood. Pegava um avião no parco aeroporto de Goiânia, ia para o Rio, e
trinta e sete horas depois, com escala em Manaus, no Panamá e Miami, estava em
Nova York para se apresentar na Broadway. Acabada a temporada de show,
retornava para o centro-oeste do país, na região que ela chamava de Promissed Land. Miss Hogarth perguntou
para o meu pai, depois da aula, se ele podia ver uns papéis sobre a compra de
um terreno.
– Tenho medo de que o
dono não seja o dono da terra e que ele esteja vendendo o que já vendeu para
outro.
E depois:
– O senhor me ajuda?
Meu pai levou para casa
o contrato e não descobriu nada de anormal. De qualquer maneira no dia seguinte
foi até a Junta Comercial perguntar sobre a idoneidade do proprietário do
terreno, dono de uma grande loja comercial, passou no tabelião para conferir os
papéis, e foi até a Prefeitura para ver se a área era pública. Muito se vendia
na cidade nova, principalmente para os forasteiros, terrenos destinados aos
órgãos de governo, praças, indústrias e comércios.
Como tudo para os
americanos, o paraíso se referia também a dólar. Mary Martin mesmo dissera que pagava
oitenta centavos de impostos para cada dólar que ganhava nos EUA. Aqui, não. Joan
Lowell também gostava de dólar. Pegou milhares deles com Gary Grant para
comprar terras em Goiás e nunca prestou contas ao ator. Meu pai foi visitar
Joana com miss Hogarth. Sentaram no alpendre da fazenda, Joana serviu limonada,
conversaram sobre Hollywood, meu pai sempre desconfiado de que as duas
planejavam algum golpe. Naquela época ainda não se sabia que Joana ficara com o
dinheiro de Gary Grant e miss Hogarth não fizera nada que a desabonasse, senão
os vestidos justos e os shorts que usava em casa como na vez que meu pai foi lá
devolver o contrato e tranquilizar a moça.
A varanda é o que
salvava da canícula da cidade. Sentado na cadeira de vime na varanda do hotel,
tomando cerveja, meu pai pensava que talvez seu tempo ali estivesse se
esgotando. Bernardo chegou, puxou a cadeira, sentou-se.
– Notícias da guerra –
e aproximou o jornal sobre a mesa a fim de que meu pai o alcançasse.
– Às vezes ouço o
discurso de Hitler pela rádio.
– O senhor então sabe
alemão.
– Não – respondeu meu
pai pegando um cigarro. – Ouço o timbre, a modulação da voz, o tom, o diapasão.
O bigode de Bernardo,
vasto, grosso, do século passado, ficou mais branco com a espuma da cerveja.
– O senhor me diga, seu
Bernardo, o senhor conhece a professora miss Hogarth, do colégio das freiras?
– A bonitinha, a
lourinha americana?
– Essa mesmo.
– Sei muito pouco –
disse Bernardo Elias, alisando o paletó jaquetão de linho branco.
– O que faz uma
americana vir pra cá e por que a madre superiora aprovou a doidinha dançarina
dos filmes americanos para ser professora de inglês para as moças da sociedade?
– Quem dava aula de
inglês no colégio era a Mirtinha, filha do Mafra, dono da madeireira. Ela foi
estudar nos Estados Unidos, voltou e o colégio aproveitou a moça para dar
aulas. Mas depois a Mirtinha se casou com um filho de senador e foi morar no
Rio de Janeiro. Nessa época miss Hogarth já tinha ficado viúva, se assim a
gente pode dizer, do rapaz que veio com ela de Hollywood. Muitos falam que ela
veio para o Brasil porque era católica, tinha vocação de religiosa e queria renunciar
ao mundo, mas a verdade é que veio acompanhando um rapaz americano, John Meyer,
piloto de teco-teco. O avião do rapaz se espatifou lá pra os lados de Minas,
ela ficou no Brasil, as freiras não tinham outra pessoa para dar aula de
inglês.
– A moça agora é amiga
do meu irmão.
– O senhor me desculpe,
doutor, mas seu irmão gosta de mulher complicada.
– Coitado, justiça seja
feita, desta vez ele não procurou confusão. Miss Hogarth é que o descobriu. Ela
diz que os brasileiros são brutos, não sabem inglês e não têm modos para comer.
Ela sente falta de teatro. Diz que mais importante que o cinema – para falar a
verdade parece que a moça detesta cinema – é o teatro. O teatro para ela é a arte mais importante.
Ela diz que a ópera, por exemplo, que é um teatro cantado, tem música, pintura,
arquitetura e literatura, é a expressão maior da arte.
– Uma cidade que está
se construindo tem muitos operários. Ela não entende a arte do operariado.
– O senhor, pelo visto,
dr. Bernardo, tem suas ideias soviéticas.
– Leia Gorki, doutor.
Toda a sabedoria do mundo está lá nas páginas do russo.
– Ouvi falar que o
senhor é a favor de que os pais não criem seus filhos. Que a criação é uma espécie
de perpetuar a propriedade privada.
– Sou a favor de o Estado criar os filhos. O
Estado sabe melhor do que os pais educar crianças que no futuro, como adultos, pensem
comunitariamente e não ajam com egoísmo, sentimentalismos e se aferrem a bens
pessoais ou heranças ou qualquer apego a coisas materiais que não sirvam para
criar o bem coletivo.
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