quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Poema para Lêdo Ivo, inédito RCF


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Lêdo, morreste em tua pátria.
Agora entendo por que os de língua espanhola
te conhecem tão bem e amam teus versos.
Se tens muito de Alagoas,
muito de teu verso sua Espanha.
Em teus versos espreita
uma alagoas espanhola,
uma alagoas de dor náutica
de quem em terra
se sertaneja, em terra
canta Sevilha,
em terra e mar nordestinos,
a claridade do teu curral de peixes,
expostos em teus versos
como um delírio de Dalí,
uma flor gitana de Lorca:
os ciganos nordestinos
gemem seu canto a palo seco
do teu amigo João,
que ambos conheceram
o que é viver exilado do mar
que se traz dentro da gente,
um mar gemibundo,
um mar desabrido e enérgico,
um mar cardíaco,
um mar cheio de escadas
que quanto mais se sobe
nunca se alcança
como na cascata de Escher.
Por fim te digo que morreste
em tua pátria que, me perdoes,
não é alagoana ou sevilhana,
mas a pátria das palavras,
a pátria dos teus versos,
a pátria de tua língua
que em toda tua vida
te banhaste em seco
e para sempre,
um mar de ruídos,
um mar de ondas sonoras,
um mar de poesia
que, ora em maré vazante,
finge a imitação da vida
que cada manhã avança e recua,
como um poema encruado
que na mente não cessa
e segue uma e outra vez soando além do sono.



23.12.2012



quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Exame médico- existencial, poema RCF


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Os dias marcham com seus passos de ganso.
A lua burca no céu,
o quarto crescente de escuro.
O chek-in do desejo
transforma a cama numa esteira,
o teste ergométrico feito a quatro pernas.
O instante está cheio de cordas.
Há uma estalactite
que insiste em pingar
ali onde me encaverno.
Os advérbios – que são um modo de ser –
têm a semelhança da queda.



(do livro O difícil exercício das cinzas. Rio: 7Letras, 2014)

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Eterno passageiro por Lígia Cademartori

Tradição e ruptura na poesia contemporânea





Um poeta forte, disse Vico, é aquele capaz de adivinhar-se e ousar o impossível: dar origem a si mesmo. Em Eterno passageiro, recentemente lançado, Ronaldo Costa Fernandes, escritor de carreira sólida, dialoga com a tradição, mas consegue afastar-se dela para falar em língua própria. Expõe-se, portanto, à experiência de viver a continuidade e a ruptura.
Poesia marcada pela cisão, traço distintivo da arte contemporânea, encontrará receptividade maior entre aqueles que se reconhecem no exercício de simbolizar pelo verbo criativo os sentimentos de desconcerto e restrição. O título do livro instala a ambigüidade e abriga contradição aparente. Pois, na verdade, eterno e passageiro não estão em posições opostas. Antes, mantêm-se em reversão constante na contramão da lógica. Já na capa, o prenúncio que é do tempo e do incontornável exílio que se trata, e não importa aí a geografia. A noção do tempo instila a morte pressentida e imaginada. E é também imaginária a relação com o espaço, do qual o sujeito poético parece habitar apenas o reflexo fantasmagórico.
Na relação entre tal sujeito e seus objetos não há embate, mas tampouco ocorre conciliação. Transfigura objetos e situações ordinárias – o telefone, a geladeira, o barbear-se – investe-os de características insuspeitadas, estabelece relações inéditas e é assim que são deflagradas significações emergentes no poema, e só nele.
As coisas nomeadas em sua concretude não excluem a subjetividade de quem olha nem ocultam ou descartam emoções. Mas entre o homem e seus circundantes concretos não há interação harmônica, porque sequer é evocação direta o que faz. Os objetos são desconstruídos e refeitos sem alusões ou aura. De fato, ao nomeá-los, o poeta os desembaraça de suas funcionalidades para fazê-los apenas matéria de poesia. Não remetem, necessariamente, à prática humana.
O livro propõe ao leitor que participe desses sentidos novos nascidos de infrações calculadas, transgressões feitas norma e categorias impertinentes. O poeta sabe a seu modo, como Nietzsche, que na vida a discordância é regra e o acorde a exceção. Por isso, diz de si, dizendo de outro, preferir “em vez do trinado a rima rouca”.
A insuficiência do comentário crítico se faz maior quando é de poesia que trata, pois o “poeta só se traduz em sua língua” e essa não é traduzível em outra fala. A poesia é a linguagem em situação extrema, experiência com a potência e a fragilidade dos sentidos atribuídos, e com a fronteira que separa a palavra do silêncio. Talvez por isso possa facear com privilégio a angústia, a falta, o instável e a dispersão. E quando, ao fazê-lo, encanta e expande a vivência tida, teve sucesso o poeta e celebrou-se a poesia.

Caderno PENSAR do Correio Braziliense em 20 de novembro de 2004.



Ligia Cademartori é doutora em Teoria da Literatura, ex-professora da Universidade de Brasília - UnB, autora de diversos livros e artigos sobre teoria e crítica literária.

domingo, 24 de fevereiro de 2019

Anatomia das dores, poema RCF


Awesome photography inspiration #25- Nico

 Meus rins tomam o lugar
da cabeça: doem tanto que
me esqueço que tenho de carregar
outros órgãos e outras dores.


(do livro O difícil exercício das cinzas. Rio: 7Letras, 2014)
(photo by Tico)