Ronaldo
Costa Fernandes
A poesia de Carlos Machado se insere no
conjunto de propostas da grande linha da poesia universal: o discurso do homem
no mundo e sua condição existencial. Estudando longamente a produção homérica e
outras da antiguidade, Lezama Lima observou – embora não seja novidade, a
abordagem de Lezama é primorosa e erudita – que mais do que tudo o ethos perpassava os poemas e nele eram
fundadas as estéticas e as angústias coletivas e individuais. Borges, por sua
vez, afirma que a metáfora, por mais abstrata que seja, carrega consigo o dado
concreto, e mais: que a metáfora, embora seja vista como uma sofisticação da
linguagem, nasceu da observação mais objetiva da realidade. Para que nos servem
as observações do poeta cubano e do argentino? Para ressaltar que a poesia, por
mais sofisticada, abstrata, esotérica ou metafísica, está apoiada na realidade,
dela nasce, salga a ferida social, aponta as dores do mundo e do homem no
mundo, é testemunha das mudanças no tempo em que o poeta vive e sobrevive e,
ainda sem esgotar a lista, que não pode fugir do horizonte cambiante do
presente. É o que empreende Carlos Machado neste Tesoura cega, que aponta para sua poética de desvelamento do real
de forma criativa e renova seu arsenal linguístico em favor da melhor poesia.
É de longa data que o site Alguma Poesia – um dos melhores do
Brasil – criado por Carlos Machado mostrou sua competência no jornalismo
literário e na crítica de poesia. Carlos publica seu site acompanhado de lúcidos e pertinentes comentários sobre autores
mortos e vivos da literatura brasileira e universal. Entre eles, podemos
encontrar páginas sobre T.S. Eliot, Walt Whitman, Marianne Moore, Paul Éluard
ou Federico García Lorca, da mesma maneira que poderemos ler sobre João Cabral,
Drummond, Murilo Mendes ou sobre contemporâneos mais ou menos conhecidos, mas
todos de qualidade. O prisma crítico, de antologista e de homem de letras, já
mostra que além de bom gosto, não lhe é estranha a melhor poesia e, mais ainda,
que Carlos Machado detém uma cultura literária – especialmente poética – que
poucos literatos brasileiros dominam.
Sem vincular-se a nenhum movimento, há
em Carlos Machado uma pluralidade que faz sua singularidade. Baiano-paulistano,
sua poesia neste livro foge do regionalismo (embora em outro, exerça com competência
a literatura de cordel), sem entretanto escapar da crítica à megalópole
paulistana onde vive. Mas é no espaço e tempo de sua existência, na memória e
seu estar-no-mundo que Carlos vai garimpar seu ouro drummondiano para ser um
poeta nacional. Orientando-se pela bússola da emoção e pelo mapa da
perplexidade diante da vida, o poeta logo em seus primeiros poemas, oferece-nos
quase uma orientação/desorientação sobre sua cartografia estética:
Mapa
De
certo, apenas a incerteza.
O
copo branco sobre a mesa
e esta
aspiração de domingos.
De certo, a
morte e seus respingos.
O menino azul
quer um mapa,
carta de
agir, segura e exata.
Quer seguir
rijo, reto e justo
para
justíssimo lugar.
O que, então,
responder? Desiste,
esse lugar
não há e – triste! –
não há mapa,
nem portulano,
nem porto
lhano onde ancorar.
Como dizer:
menino, os mapas
não são
roteiros de achamento,
mas tênues
direções de vento
para quem só
busca o buscar?
A recorrência à infância e seu mundo mágico também
incide na lembrança de uma pastelaria. Ampliar a experiência particular ao
universal (“Cada um de nós tem sua Pastelaria Triunfo / seu porto de sonhos à
prova / de vento e desterro.”) alarga a vivência de um fato pessoal para o
repertório das ocorrências humanas. É um bom exemplo de uma poesia que não se
centra no ego, mas amplificada a voz idiossincrática, torna-a comum à
coletividade a fim de que se entenda – e compartilhe – a aventura existencial.
Carlos bordeja os variados exílios da vida – cotidiana
ou não – neste bloco de poemas que inclui a temática que virá a seguir: o
tempo. Entre a esperança e o desânimo, a espera infrutífera e a antecipação de
“um tempo de abutre”, o poema “Xeque-mate” revela o cansaço de quem ansioso vê
perderem-se a tarde, a primavera e o gume, percebe que já é tarde e que, “sobre
a pele confusa da alma”, abateu-se a desesperança, bicho que entope as artérias
da vida. Essa mestria de construção, de compor com exuberância imagética e, ao
mesmo tempo, saber dispor e adequar com inteligência tema e linguagem, é mais
uma vez aqui demonstrada.
Xeque-mate
Quando menos
se espera, já são horas.
A dama de
espadas perde o gume
e o pássaro
pousado vai embora.
Quando menos
se espera, o que se anuncia
não é a sorte
grande, a estrela Aldebarã
ou a sagração
da primavera.
São tempos de
abutre
e o coração,
músculo bélico, fraqueja.
De repente,
já é sábado,
há uns
assuntos desagradáveis para resolver
e, sobre a
pele confusa da alma,
uma densa
crosta de óxido e desalento.
Quando menos
se espera, o rei está em xeque,
e é dezembro.
Há uma
complicação de trânsito
na avenida
uma artéria
que não dá passagem.
Quando menos
se espera, já é tarde.
Na seção “Antilira paulistana”, não há
a melancolia ou a recordação de um passado. Nem mesmo há o flâneur baudelairiano. Carlos Machado reconstrói a metrópole de
todas as raças e contrastes da vida urbana, Oxóssi e a Paulista, a contradição
do grande capital e a capital das favelas e bairros periféricos violentos.
Adeus à rua Lopes Chaves, de Mário de Andrade, embora haja, já que falamos de
Mário, uma boa referência macunaímica no poema “Oxóssi na cidade” (“Oxóssi está
na Paulista. / Apura os ouvidos / para escutar / os passos da caça.”). E Fiat lux para um mundo informe e
desigual, a boca gigante do medo a deglutir poeticamente a miséria urbana e
humana da Pauliceia movida por sua lógica cujo desvairamento é o conjunto das
disparidades.
Carlos Machado está mais preocupado em
flagrar o pequeno cotidiano (nada de parques e jardins, mocidade vibrante,
desvios e comportamentos da juventude ou dos marginais), o “lava-rápido, a
floricultura e o escritório de contabilidade”, ou seja, “a terrível humildade /
insuspeitada em dias de negócio”.
Domingo
O
lava-rápido
a
floricultura
e
o escritório de contabilidade
recolhem-se
todos
a
uma terrível humildade
insuspeitada
em dias de negócio.
Na
rua vazia,
são
todos como aves empalhadas
destituídas
do fogo
capital
que
alimenta suas entranhas.
O tempo sempre fascinou o homem e
ingressou na poesia desde épocas homéricas. E não é para menos, porque o tempo
que “dói como um caminho que nunca chega” (“Pedra”), cria e definha o que está
em nossa volta para não dizer que dele somos filhos e sofremos, assim que
nascemos, sua bonança e sua desgraça. Carlos Machado retoma a tradição dos
grandes poetas ao debruçar-se sobre a temática dolorosa de constatar que o
tempo é nosso cúmplice, nosso criador e nosso algoz. No grupo de poemas
temáticos sobre o tempo, o poeta exercita sua veia filosófica – embora poesia
não seja filosofia – e mostra que é um excelente bricoleur de imagens (com acerto, Derrida afirma que “tout discours est bricoleur”). Carlos
Machado tem algo a dizer e o diz muito bem: “Um buraco na pele das horas. /
Quem ousa pensar / o tempo / como rota interrompida?” Ou: “Quem se atreve a
dizer / que ontem não existiu? / E que o próximo sábado / vai cair no oco e
ficar suspenso / do calendário?”.
O poeta opera com a temática do tempo
cercando-se de metáforas da vida concreta a fim de que se tenha a ideia mais
aproximada de passagem, desgaste, ausência de reversão e outros atributos do
fenômeno temporal. Igualmente, investe no campo do abstrato, já que ao falar de
tempo é difícil não questioná-lo metafisicamente ou abismar-se diante do grande
vazio que tudo move.
É talvez nesse trecho do livro acerca
do tema que Carlos Machado mais inaugura seu arsenal de imagens – cruas,
revoltadas, ora conformadas, ora na tentativa em vão de detê-lo –, de belas imagens,
desafiando o próprio tema, buscando uma fórmula para triturá-lo como se rompe
uma pedra ou mirando desconfiado essa dança desconcertante.
Tango
Bem
que eu desconfiava:
o passo do
tempo
não é
constante
nem fiel ao
milho seco do
relógio
– ração ofertada,
de grão em
grão, a um
pássaro
invisível.
Serpente
elástica,
o tempo se
expande
e contrai
como
corda de
trapézio
circense
e arrasta o
espaço
num laço
dodecafônico.
Para Einstein
ao tempo se
permite
uma dança,
e o espaço
vai
passo a passo
com ele.
Os dois
parceiros,
num tango
cósmico,
vibram
no
desconcerto desse
trapézio-violino,
que os
maestros nunca
saberão se
está
dentro ou
fora do tom.
Dentro do espectro da temática do tempo, não existem
apenas o princípio de corrosão (tão utilizado por Drummond em sua poesia),
espanto, desânimo de uma luta inglória e em vão, da desagregação e perda, mas
também outros elementos como a alegria, o acaso, a memória. Sob, contudo, o
espectro da lixa do tempo, a memória revela lembranças. Mas, curiosamente de maneira
original, o poeta apresenta o passado e o acervo de recordações não de forma
rememorativa da infância com lugares-comuns. Apresenta, sim, uma gama variada e
única de memórias: “os sótãos / as fossas submarinas”, a cicatriz, o silêncio,
“a lagartixa antiquíssima”, demonstrando mais uma vez o caráter idiossincrático
da poesia de Carlos Machado: “tudo não passa de rara / penugem no braço da
imaginação?”.
O tempo nos transforma em animais num petshop. “O tempo é nosso bicho de
estimação”, afirma o poeta, para logo em seguida, corrigir: “nós é que somos
seus artefatos de brinquedo”. E nessa dialética bem construída, num raciocínio
lógico, mas sem perder a poeticidade, Carlos Machado erige seu pensamento de
que somos, como no poema de Camões, “bichos da terra tão pequenos”. Mas aqui a
diferença está em que somos “brinquedos orgânicos” para o desfrute de um grande
e perverso deus, Cronos, que tudo pode, tudo corrompe e está tão ubíquo que
dele não podemos fugir, presos a sua teia infinita.
A ironia e a leveza dos poemas enfeixados no subtítulo
“Lições de assovio” mostram um poeta que sabe lidar tanto com temas profundos e
considerados nobres quanto com expressões miúdas do cotidiano. Mas mesmo nos
flashes da vida urbana, permanece o instinto investigatório da alma dos homens,
da pequena insônia do dia a dia e dos destroços da existência. Em poemas
curtos, em que Carlos Machado se serve do sense
of humour tão machadiano quanto da melhor poesia brasileira das últimas
décadas, a poesia aqui se apresenta como um espocar de novidade estilística e
fixa um momento de grande surpresa. Veja-se o uso da ironia e o inesperado
jocoso final deste poema:
Josué
se você
estiver cansado
de si mesmo,
vá ao
cartório civil
e troque seu
nome para Josué
depois, com a
nova certidão
no bolso,
corra
desembestado
pelas ruas
gritando:
sol, para! sol, para!
isso não
resolve sua dor
nem vai frear
o giro da
terra, mas
propicia um
belo espetáculo
Os assovios incluem também uma gama variada de
sensações, angústias e percepções da realidade. Só um poeta com visão delicada
e sensibilidade estética pode variar de tema, nesses “assovios” poemáticos, e
lidar com apreensões que variam das luas e do passado, das cigarras, das
frestas do escuro ou mesmo de um quadro de Hopper onde figuras desaparecem ou
da estranha mulher de maio que “passa disfarçada de pedestre diante do Relógio
de são Pedro e de todos os relógios”.
Sem ser paulistano ou baiano, poeta de espectro
nacional, Carlos Machado ainda persegue o tempo do tempo que lhe é recorrente
como no poema abaixo:
Baobá
Vontade de
fazer
uma coisa
grande
de futuro
imenso:
plantar um pé
de jacarandá
um baobá
e deixá-lo aí
para beijar
a cumeeira
dos séculos,
zombar de
tudo
que é breve
e que, como
nós,
se consome
no atrito das
horas, na
vertigem
incontrolável
das coisas
miúdas.
Mesmo que o próprio autor revele que neste livro
utiliza-se menos de imagens, elas permanecem – para estesia do leitor – a
contribuir à fertilização poética que não advém apenas de formulações emuladas
pela disciplina da razão ou utilitarismos mecânicos, mas da prodigiosa
imaginação e adequação entre objeto comparado e estímulos imagísticos.
Tema imemorial, o amor, suas venturas e desventuras,
frequentam as páginas deste livro na sessão “Sete grãos de chumbo”, que, pelo
título, o leitor logo perceberá que o poeta dele se encanta, mas o vê com
reticência e algum peso, entre tantas variações de vivê-lo. O amor desnorteia,
inflama, desconcerta, enlouquece, faz os amantes renunciarem ao mundo para
viver na renúncia do espaço infinito do sentimento em que cabem apenas os dois.
Contraditório, incandescente, pluma de chumbo, peso e leveza, encanto e
desencanto, o poeta descarna o amor em suas vestes mais ilusórias e o expõe em
sua nudez mais perversa: constrói e desconstrói a uma só vez.
A última parte do livro envereda pelo exercício da
exegese da linguagem, de processo criativo e da existência per se da poesia. Carlos Machado debruça-se sobre o ato de
escrever, a tentativa do poeta de se igualar ao caçador de coisas miúdas (“Relojoeiro,
numismata / colecionador de conchas do mar / gastas o olho / e a alma / nesse
ofício minúsculo.”), à pesquisa de palavras que nos fazem enxergar o mundo. O
poeta é um criador de mundos. É por intermédio da palavra que a realidade
existe e, como Octavio Paz apontou, além de todo poema arregimentar-se com sua
mitologia pessoal, o poeta só entende a realidade se ela está filtrada pela
palavra. E assim o poeta nomeia o mundo, numa descoberta constante da realidade
e uma renomeação obsessiva das coisas que já existem e que o poeta insiste em
rebatizá-la com suas metáforas e ali, no poema, na realidade poética, a
realidade das palavras é mais realidade que aquela que pretensamente
acreditamos ser o real empírico.
Carlos Machado, em sua metalinguagem, não vê a palavra
– sustentáculo do poético – erigir-se em mito ou salvação. Sua visão – diga-se
de passagem, é original, pois o comum é enaltecer o verbo como salvador e como
antena da raça quem o utiliza – é de uma negação antes que afirmação de uma
realidade que constrói e fornece outro mundo mágico onde o poeta poderia
abrigar-se. Nesse sentido, o elenco de semas negativos se acumula: poço,
solapa, destelha, devassa, osso, escalavra, avesso, náufrago etc.
Desmitificador de sua profissão, seu ato de fé na redenção da palavra é
invertido para um sofrimento – no sentido de ser o contrário de ativo, ou seja,
o poeta sofre o desgaste e a maldição da palavra (“palavra que me fabricas /
palavra que te fabrico / produto de minha lavra / sou eu que lavrado fico”) –,
tornando-se o poeta vítima do instrumento que utiliza.
Gosto dessa maneira de Carlos Machado desfazer o mito
da salvação pela palavra numa atitude religiosa que atravessou séculos e ainda
persiste na maioria dos poetas vivos. Não que não se possa encontrar na
linguagem a salvação última e exercitá-la em busca de humano conhecimento do
mundo, mas é preciso ter coragem e também denunciar aos coetâneos que a
palavra, antes de tudo, é perigosa e pode machucar antes que curar quem a
utiliza com engenho e arte, com destreza e lucidez, com perícia e perquirição,
que pertencem todos à esfera do repertório do mágico e do poeta Carlos Machado.