terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Poema a Lezama Lima, RCF




Esta é a estranha noite de sons gris
que vêm burlar meu sono
como algaravia de festa rumbeira de vizinho.

Um poeta habanero, asmático, de voz grave mas faltosa,
sussurra poemas e nos irmana num tempo alçado à medição zero.

Lezama me diz, sentado em sua cadeira de palhinha,
na varanda da casa, abanando-se com um albanico de paja
que posso habitar espaços tortuosos de ventos frígios
existir sem existir
na presença prístina no casulo exuberante e feroz das palavras
que zunem e produzem o fel do poema.

A noite com seus cachos morenos
olhos trigueiros de quem não teme a luz
nem os versos pardos que se movem nas sombras.

Estreitas são as mãos que me acercam
– afinidades eletivas – a poetas que nunca conhecerei
e que a morte fez supérflua
pois os alcanço como alcança o menino
que pula para apanhar a manga lápis-lazúli
na mangueira nervura de estrofes.



(do livro Andarilho, 2000)

imagem retirada da internet: lezama lima

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

As casas, poema RCF




As casas do campo
moram longe uma da outra,
são baixas, mirradas,
descoloridas,
mal se põem em pé
– as casas se parecem
com seu dono.

O camponês
tem alma de palha
como a cama
e, bambo como uma mesa rústica,
o corpo do camponês
necessita um calço na perna.

As casas vistas do alto
– do alto, as plantações são certinhas
como cabelos cortados –
mostram-se aqui e ali
sempre com o olho piscando
da janela quebrada.
As casas dos camponeses
mais expõem que escondem
mais cansam que repousam
mais doem que alegram
a casa camponesa
é feita de farinha e rapadura
por isso é que na época das cheias,
as casas, subnutridas,
se dissolvem nas águas.
Na prancheta dos arquitetos anônimos
das casas camponesas
só existe o risco da morte.

As casas por fim anoitecem na lamparina
de chama pequena.
É um pouco da alma camponesa
que queima no pavio
empapado
de querosene
                  e vazio.





imagem internet tarsila do amaral

domingo, 9 de dezembro de 2018

O viúvo, 3º capítulo




A primeira elefantíase que vi foi na Quinta da Boa Vista. Nunca mais me esqueci das pernas gigantescas, as pernas pareciam ter nascido antes das pessoas. As mulheres iriam parir pernas. E das pernas viriam o resto do corpo. Nove meses para parir uma perna. Uma perna enorme, ressalte-se. Mas uma perna. E, como de um tronco, nascem os ramos, tudo o mais era secundário e derivativo. O homem é um ser derivado das pernas. Uma imagem infantil é tão forte que a realidade passa a ser o quarto escuro da infância que se carrega a vida inteira.
Meu quartescuro tem medos trancados, pernas troncos de árvore, lídias mortas que reclamam que as deixei no limbo do esquecimento, a ausência de rostos paternos, um abastardamento da memória.
As pernas de elefante não me respondem. Não são independentes, mas não me ouvem. Elas se guiam sozinhas e têm pensamentos mórbidos. Uma perna distorcida é capaz de distorcer toda a realidade. De inchar a realidade. De fazer o que se vê e pega uma coisa intumescida.
Elas não crêem na realidade e por isso saem por aí de vez em quando e passeiam solitárias, vadias, independentes e gordas.
Não gosto quando me levam a lugares sórdidos. Há elefantíase às vezes no que penso. Então o pensamento se torna inchado. Dolorido, avermelhado, o pensamento lateja, a gente aperta o pensamento e, inchado, fica a marca do dedo no pensamento.
Fico estirado na cama. Minha cama tem vida própria. Respira, sua, transpira, goza, dorme ou se incomoda. Quando a preguiça a toma, toda ela se esparrama e mira o teto com o tédio dos suicidas. Mas minha cama não tem vocação para a morte.
Há cumplicidade perigosa entre minhas pernas gordas, independentes, com a minha cama que trama e se arrisca além do sonho. Minha cama também sofre de elefantíase – enorme, paquidérmica, pele áspera, ingressa nas imaginações noturnas e nos suores ansiosos.


(imagem internet: botero)