A primeira elefantíase que vi foi na Quinta da Boa Vista. Nunca mais me esqueci das pernas gigantescas, as pernas pareciam ter nascido antes das pessoas. As mulheres iriam parir pernas. E das pernas viriam o resto do corpo. Nove meses para parir uma perna. Uma perna enorme, ressalte-se. Mas uma perna. E, como de um tronco, nascem os ramos, tudo o mais era secundário e derivativo. O homem é um ser derivado das pernas. Uma imagem infantil é tão forte que a realidade passa a ser o quarto escuro da infância que se carrega a vida inteira.
Meu quartescuro tem medos trancados, pernas troncos de árvore, lídias mortas que reclamam que as deixei no limbo do esquecimento, a ausência de rostos paternos, um abastardamento da memória.
As pernas de elefante não me respondem. Não são independentes, mas não me ouvem. Elas se guiam sozinhas e têm pensamentos mórbidos. Uma perna distorcida é capaz de distorcer toda a realidade. De inchar a realidade. De fazer o que se vê e pega uma coisa intumescida.
Elas não crêem na realidade e por isso saem por aí de vez em quando e passeiam solitárias, vadias, independentes e gordas.
Não gosto quando me levam a lugares sórdidos. Há elefantíase às vezes no que penso. Então o pensamento se torna inchado. Dolorido, avermelhado, o pensamento lateja, a gente aperta o pensamento e, inchado, fica a marca do dedo no pensamento.
Fico estirado na cama. Minha cama tem vida própria. Respira, sua, transpira, goza, dorme ou se incomoda. Quando a preguiça a toma, toda ela se esparrama e mira o teto com o tédio dos suicidas. Mas minha cama não tem vocação para a morte.
Há cumplicidade perigosa entre minhas pernas gordas, independentes, com a minha cama que trama e se arrisca além do sonho. Minha cama também sofre de elefantíase – enorme, paquidérmica, pele áspera, ingressa nas imaginações noturnas e nos suores ansiosos.
(imagem internet: botero)
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