sábado, 17 de outubro de 2020

Um homem é muito pouco 5



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Deus criara o cio das fêmeas e deu olfato aos machos. Clemente teria que aprender com outros de sua espécie a arte da conquista que já soubera em outros tempos, mas que a beleza e classe social de Yolanda o transformavam em bicho que bufa para conquistar, outros ainda esperneiam – talvez espernear não fosse o método mais correto –, há ainda outros que se mutilam – método muito doloroso –, alguns cantam, andam em roda como índios, emitem cheiros nauseabundos para humanos, há aqueles que abrem asas se têm asas.
Mas Clemente não precisou reaprender nada, porque a lei da atração é mais forte e os dois iam subindo a escada e ela se desequilibrou, ele a amparou e ela caiu nos braços de Clemente e quando viram estavam se beijando, se tocando, tirando a roupa um do outro, dentro do quarto de duzentas escotilhas de Clemente que teve de fechar as persianas que caíram desajeitadas e brutas para fazer noite o dia no quarto a fim de que não apenas não os vissem de fora, mas a penumbra diminuísse o pudor e ela pudesse ser plenamente fêmea e ele plenamente macho.
Durante os dias seguintes o quarto estava presente em toda a casa. A cozinha passou a ser quarto, as escadas passaram a ser quarto, a sala passou a ser quarto, o banheiro passou a ser quarto. E qualquer superfície virou cama, cama dura, cama de madeira, cama de azulejo, cama de chão. Isso porque nunca a empregada fora tão dispensada e fora tanto ao cinema levar a filha de Yolanda, a menina Aninha que sofria de gritos e convulsões e que nunca mais teve gritos e convulsões e como era época de férias escolares até mesmo uma viagem para o interior de Minas Yolanda preparou para que a empregada fizesse de dama de companhia que dama de companhia não mais existia, mas Yolanda, com seu linguajar de outro tempo e de outra classe, deu à empregada termo novo e função outra a fim de que ela pudesse mudar a arquitetura da casa da Tijuca e transformasse tudo em quarto e cama a fim de serenar o furor da espécie quando mistura paixão e sexo ou faz sexo com paixão ou se apaixona e faz tanto sexo que parece que o corpo que é único pode se exaurir de tanto amar e definhar de tanto gozo e felicidade.
Embora Arlindo tenha mandado recado para que Clemente fosse falar com ele, nenhum dos dois procurou o outro. Clemente achava que não devia procurar ninguém e se alguém tinha que procurar o outro era o capitão Vaz quem havia de se explicar. Mas Clemente não pensava mais em Arlindo nem também em Matilde e, se por acaso a memória fizesse das suas e lhe trouxesse imagem do passado dos dois, ele logo a expulsava com balançar de cabeça e muxoxo como se fosse algo físico, mosca ou vira-latas que se põe a correr com grito e palma. Mas o que Clemente não sabia é que o mundo da Marinha não é oceano, mas pequena lagoa onde todos se encontram. E muito menos Clemente sabia que havia outro mundo, o chamado mundo da política, que também fazia parte da mesma lagoa da Marinha. Clemente nunca dera bola para a política e muito menos agora que andava por parques de diversão, pela Quinta da Boa Vista, levando Aninha ao zoológico, ao cinema para ver musicais e comédias, indo ao restaurante com Yolanda, até mesmo ao baile na casa de uma amiga, onde Clemente se mostrou competente com os pés da mesma maneira que o era com as mãos.
A gente conhece pouco as mãos, pensou Clemente. E muito menos a escuridão. Na escuridão há gosto de sangue na boca. Outras vozes vindas não se sabe de onde gritavam em seu ouvido e não podia distinguir quem mais o acusava, quem mais o destratava. A casa tinha cheiro de suor e de fim. O cheiro de fim ele conhecera várias vezes. Ao lado dele estava o fim. O fim já não falava. O fim fora tão barbaramente torturado que, mesmo com médico mantendo-o vivo para que não morresse, o fim não pôde suportar mais a dor. Ele, Clemente, não sabia de seus limites. Há homens que pensam que têm muito limite e quando se defrontam com o seu limite percebem que já é tarde.

O rosto, poema de Estrangeiro (1996)


 

sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Lições de voo, poema RCF




Os pássaros minam a imobilidade do azul,
sob a luz do sol que os encapa.
Vagueiam em sua rota no céu,
que não tem caminho nem trilha
pois todo voo logo anula a estrada.
O homem deveria deixar de ser
fazedor de caminhos,
aprender a não prover estrada,
sem pista que o eleve,
a apagar a rota tão logo desenhada,
a borrar o que foi feito,
sem rumo que o defina.


(do livro Memória dos porcos. 2012)

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Poema para o suicida, RCF


I

Os exames de sangue
não dizem quantos ml. de ruína
podem acusar o suicida.
O suicídio é quando
o lençol freático das veias
sobe ao leito da pele em punho cortado.

Nunca está atrasado o suicida
pois não há atraso
para a hora aziaga.
Tem em seu relógio
uma bomba
anda sempre afogado
cada rua ou avenida
(anda sempre de pé nos parapeitos)
é a aleia principal do cemitério
dos vivos em que é obrigado
a naufragar a cada manhã.

Se Narciso morreu
se adorando
não se suicidou.
O suicídio é olhar
o lago e ver o fundo
sem ver seu rosto.

O homem não escolhe o suicídio
o suicídio é que o escolhe.
Vê a magreza da alma,
a vida que não é sonho,
o pôr do sol cheio de espinhos
e aí decide nele se alojar.

Suicídio é o cano de escape
com que respiramos,
a fuga para dentro de si
como o peixe que pula
para a prisão do ar livre.

II

Os suicidas – os suicidas
que me perdoem, se tento
entendê-los – quando não
deixam bilhete, falam
escrevem através do corpo,
do corte, do ar envenenado,
do alçapão, da fruta madura
em que se tornaram. O bilhete
final pode até ser escrito,
mas está melhor inscrito
no corpo que sofre a demissão
da mente, esta que já morreu
antes, esta que enforcou o
pensamento, inalou a ideia
mórbida a ideia do fim.
Que outro alfabeto também
usam os suicidas? Além
da carta, lançam a última
frase pelo voo cego dos
verbos na voz passiva, pelo
ponto final, pelo adjetivo
abstrato do gás, pela letra
pela letra retorcida da corda.

(A máquina das mãos, 2009)

imagem retirada da internet: chagall

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Da imprevisibilidade dos pesos de papel




Gosto de pesos de papel
e da impermanência na permanência.
O maço de papel se eriça e não se move,
seus ombros suportam o peso.
Os pesos de papel, aquário imobilizado,
em vez de peixes,
traçam a permanência do mudo.
Minhas folhas escritas
caem no outono da janela aberta.
Não posso mudar a estação
do ano, do rádio, do metrô,
da minha estada na ferrovia
– por onde vou o ferro
cria uma estrada de renúncias,
paralelas onde descarrilo
o peso dos anos.
Tudo é impermanente
mesmo os cristais aprisionados
no peso do mundo.
Talvez a abóbada celeste
seja o peso dos dias
e estejamos todos nós
cristalizados e permanentes
na silhueta das coisas.
Sem perspectiva de alumbramento,
os desenhos do tédio
murcham a impermanência.
Os olhos são dois pesos
de cristalino espanto
e, contudo, fixos, têm a leveza
da anatomia do sonho.



(O difícil exercício das cinzas. 2014)

domingo, 11 de outubro de 2020

Fuga, poema RCF




Quem inventou a medida do palmo
queria ter o mundo em suas mãos.

As palmas me causam horror:
o ato vazio de nada pegar.

Tudo no rio me remete
à fuga: o escorrer quase cismático

 
(do livro A máquina das mãos, Rio, 7Letras, 2009)
 
imagem retirda da internet: otto dix