quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Poema para o suicida, RCF


I

Os exames de sangue
não dizem quantos ml. de ruína
podem acusar o suicida.
O suicídio é quando
o lençol freático das veias
sobe ao leito da pele em punho cortado.

Nunca está atrasado o suicida
pois não há atraso
para a hora aziaga.
Tem em seu relógio
uma bomba
anda sempre afogado
cada rua ou avenida
(anda sempre de pé nos parapeitos)
é a aleia principal do cemitério
dos vivos em que é obrigado
a naufragar a cada manhã.

Se Narciso morreu
se adorando
não se suicidou.
O suicídio é olhar
o lago e ver o fundo
sem ver seu rosto.

O homem não escolhe o suicídio
o suicídio é que o escolhe.
Vê a magreza da alma,
a vida que não é sonho,
o pôr do sol cheio de espinhos
e aí decide nele se alojar.

Suicídio é o cano de escape
com que respiramos,
a fuga para dentro de si
como o peixe que pula
para a prisão do ar livre.

II

Os suicidas – os suicidas
que me perdoem, se tento
entendê-los – quando não
deixam bilhete, falam
escrevem através do corpo,
do corte, do ar envenenado,
do alçapão, da fruta madura
em que se tornaram. O bilhete
final pode até ser escrito,
mas está melhor inscrito
no corpo que sofre a demissão
da mente, esta que já morreu
antes, esta que enforcou o
pensamento, inalou a ideia
mórbida a ideia do fim.
Que outro alfabeto também
usam os suicidas? Além
da carta, lançam a última
frase pelo voo cego dos
verbos na voz passiva, pelo
ponto final, pelo adjetivo
abstrato do gás, pela letra
pela letra retorcida da corda.

(A máquina das mãos, 2009)

imagem retirada da internet: chagall

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