quarta-feira, 27 de junho de 2018

Adán Buenosayres, Leopoldo Marechal

Biscoito fino e a massa(blog)

Leopoldo Marechal, Adán Buenosayres (1948)
Leopoldo Marechal é o único dos grandes escritores argentinos de sua geração a alinhar-se com o peronismo. Pagou por isso um preço amargo. Adán Buenosayres(1948), uma obra-prima do romance latino-americano, foi recebida com burlas, ataques e desprezo. Com poucas exceções, o silêncio sobre a obra se manteria inalterado durante quase duas décadas, até que a própria dinâmica de revalorização do peronismo entre a intelectualidade literária, assim como a publicação de algumas obras diretamente tributárias de Adán Buenosayres – como Rayuela(1963), de Julio Cortázar – propiciassem a releitura. Verdade seja dita, de todo o grupo de escritores associados à elite intelectual argentina, o então jovem Cortázar, ainda antiperonista, foi o único que lhe dedicou, logo após a publicação, um artigo elogioso.
A hostilidade com que se recebeu Adán Buenosayres foi tanto maior quanto mais diretos foram os seus vínculos, nos anos 20, com o grupo que posteriormente fundaria a revista Sur, o epicentro do antiperonismo literário. Marechal foi colaborador das duas principais revistas literárias do período heroico da vanguarda argentina, Proa (1922-1926) e Martín Fierro (1924-1927). Aquela foi inicialmente dirigida por Jorge Luis Borges, Ricardo Güiraldes, Alfredo Brandán Caraffa e Pablo Rojas Paz, os dois primeiros peças chave dos embates literários daquela década. Em Martín Fierro, dirigida por Evar Méndez, colaboraram, além de Borges e Güiraldes, Macedonio Fernández, o pintor Xul Solar, o poeta Oliverio Girondo e outros membros do núcleo que viria a definir o cânone da literatura argentina moderna. Marechal, cujo segundo poemário, Días como flechas (1926), foi saudado entusiasticamente pelos companheiros martinfierristas, seria uma das figuras mais destacadas naquele momento nascente da vanguarda. Sua adesão ao peronismo, em 1945, sepultaria qualquer possibilidade de que se reatassem os contatos e o diálogo com os ex-interlocutores. A dedicatória de Adán Buenosayres – “a meus camaradas martinfierristas, vivos e mortos, cada um dos quais bem pode ter sido um herói desta limpa e entusiasmada história” – aparece na primeira edição, de 1948, e é suprimida na edição definitiva, de 1966.
Quando saiu Adán Buenosayres, Marechal era conhecido como o autor de oito poemários, mas ainda não havia publicado um romance. Dedica à obra mais de vinte anos de trabalho. O resultado são 740 páginas de uma descida aos infernos da urbe moderna na melhor tradição do Ulysses joyceano. Composto de sete livros,Adán Buenosayres se divide em duas partes: os cinco primeiros livros relatam, em terceira pessoa, os acontecimentos de dois dias na vida de Adán (28 e 29 de abril, quinta e sexta, de um ano indeterminado na década de 1920), do seu despertar metafísico até o encontro com Cristo na noite de sexta-feira. Os dois últimos, o “Caderno de Capas Azuis” e a “Viagem à escura cidade de Cacodelphia” são narrados em primeira pessoa e apresentados como manuscritos deixados por Adán a Marechal. O “Caderno” é a autobiografia de Adán, de sua infância até os dois dias da experiência iniciática, enquanto que a “Viagem”, peça literária impressionante e de leitura autônoma, narra o sábado posterior à experiência, a partir do esquema das nove unidades descendentes do Inferno de Dante.
Muito já foi dito sobre os intertextos bíblicos, homéricos e dantescos da obra de Marechal. Eles oferecem as balizas para se compreender o motivo central da obra, a viagem, entendida como purificação, regresso à casa e mergulho nos infernos. OUlysses de Joyce lhe proporcionaria não só a ideia da peregrinação pela cidade ao longo de um dia como microcosmo da existência moderna, mas também uma série de técnicas que Marechal utilizaria como ninguém na literatura argentina: o monólogo interior, a superposição de temporalidades, a paródia do herói épico, a criação de neologismos a partir de raízes linguísticas distintas, a sintaxe serpenteante recheada de anacolutos, a recriação da linguagem chula da sarjeta urbana.
Mas Adán Buenosayres é também, e principalmente, metaficção. Sem muitos disfarces, estão nela representados os seus colegas de aventura martinfierrista: o cego Luis Pereda é Borges, condenado ao Inferno da Ira por inventar vocábulos como “balaustradumbre” ou “baldosedades”, paródias dos barroquismos presentes nos três primeiros livros de ensaios de Borges, depois renegados. O astrólogo Schultze, o demiurgo com quem o protagonista empreende a viagem a Cacodelphia, é o pintor Xul Solar. O filósofo Samuel Tesler, que desvenda o caráter diabólico da ciência moderna, é o poeta Jacobo Fijman. Bernini é o escritor e historiador Raúl Scalabrini Ortiz, autor do clássico El hombre que está solo y espera (1931). A própia Buenos Aires na qual tem lugar a peregrinação é literária por excelência: com a exceção da Viagem a Cacodelphia, todo o romance transcorre em Villa Crespo, território de orillas por excelência, as margens urbanas nas quais acontecem as lutas de faca que povoam a imaginação borgeana.
De todas as tristes lacunas de tradução de literatura argentina no Brasil, nenhuma é maior que Adán Buenosayres. De recepção inicialmente marcada pela hostilidade ao peronismo com o qual se alinhou o autor, ela é hoje reconhecida pelas várias vertentes literárias do país como obra magistral e imprescindível. Nela estão antecipados escritores tão distintos como Cortázar e Lamborghini, Piglia e Perlongher. A ausência de tradução é tão mais lamentável pelo fato de que a obra-prima de Marechal não é de leitura fácil para quem não domina o castelhano falado no Rio da Prata. Editoras brasileiras, já são 64 anos de atraso.

Publicado originalmente na Revista Fórum.

segunda-feira, 25 de junho de 2018

Infância e aprendizado do mundo em José Chagas, RCF

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(do livro A cidade na literatura e outros ensaios. São Luís: Edições da Academia Maranhense de Letras, 2016)

Em seu livro Colégio do vento, um pequeno grande A la recherche du temps perdu em forma poética, José Chagas faz uma viagem a sua terra natal: o sonho. É numa ambiência rural que o poeta instaura sua infância trasladada do mundo real para sua poesia. Chagas, exímio sonetista, com dicção moderna da forma petrarquiana, resgata da memória seu espaço lírico por excelência. Esta infância de Chagas não é “real”. Ela habita o poeta como uma fábula, um sonho, uma imagem, uma recorrência da ilusão memorialística que crê apreender a realidade vivida e vive a apreensão da poesia que reconstrói a sua maneira e estilo aquilo que as pessoas chamam passado e realidade.

 É extremamente comovedora a ação de busca de um tempo perdido neste poeta cuja excelência o faz, junto com Nauro Machado, um dos maiores poetas brasileiros vivos. Poeta que já fez bombardear o silêncio de uma São Luís também mítica (e que remeto, a quem interessar, ao conceito de mito que emiti em A ideologia do personagem brasileiro, ao estudar Macunaíma, de Mário de Andrade), José Chagas penetra surdamente no reino do sonho. Somente um ou dois poemas dos 40 apresentados não utiliza a palavra sonho como ponto de partida e chegada formando uma espiral poética que fere a cada verso a corda mais melancólica da infância.

A volta ao passado, visita simbólica, é vivenciada poeticamente. Ergue-se a pirâmide temática: os pais; a lembrança e o sonho. O pai representa em si toda a família e todo ser movente e humano (a mãe, o primo, o irmão) e comanda a órbita do mando afetivo, do exemplo especular e da humanidade primeva. Outra base, o lugar dito infância, informa o leitor sobre o locus poético, que não é o golçalvino idílico de minha terra tem palmeiras, nem o lamentoso e saudoso da aurora da vida de Casimiro de Abreu. É certo que o lugar é o sertão paraibano e que a infância é a infância do autor, mas ao transmigrar essa realidade para a realidade da poesia esta significa. O espaço poético da infância é o lugar do perdido, do não recuperado, do início (no início era o verbo e já era a poesia), do lugar da criação do mundo do autor. E base terceira, o sonho, revela-se a mais forte e temática: tudo se constrói a partir do sonho. Tudo remete à poesia. O poeta sonha, o poeta tem esperança, o poeta poetiza, o poeta já nasce na infância e tudo que o rodeia, seja rústico, seja comezinho, é passível de ser poetizável.

Se o poeta utilizou a palavra colégio é porque quer representar um aprendizado. Há dois tipos de lição aí. A primeira refere-se à iniciação à vida do poeta envolto no seu mundo rural e, não apenas saudosista, disciplinando a emoção. A segunda pertence ao aprendizado do sonho, da esperança, do mundo, da poesia. Um aprendizado também da memória, porque o ato memorialístico requer educação e “escolaridade” a fim de selecionar as disciplinas do viver e da práxis poética. Ou seja, aprendizado para selecionar o nostálgico, o memorialístico, o rememorar emocionado mas não sem sair com uma lição de vida.

O lugar da utopia de Chagas, a infância, se distancia da utopia da infância ou do locus utópico dos outros nossos dois comparados: Gonçalves Dias e Casimiro de Abreu. Em Chagas, o lugar da utopia está ligado à construção (“O trabalho era fruto do trabalho / e de suor o homem se fazia”, soneto 5). É um aprendizado de vida e a utopia está mesclada a uma concepção de mundo que contempla o meio rural e seu modo de viver e trabalhar. O homem é construído por intermédio do trabalho e o aprendizado da vida é também instrumentalizado pelo fazer nordestino, mais especificamente o da sua família e do exemplo paterno. O pai é aquele que fabrica uma visão de mundo e que opera um aprendizado. A utopia se molda (“Minhas mãos eram donas de seus calos, / tudo o que do trabalho eu recebia”, soneto 6) como a fabricação humana: o homem é um ser social e para viver a utopia é preciso também lembrar que a iniciação e o retorno são dois valores da mesma moeda: o modo de fazer. Sonho, utopia e lembrança remetem a um passado que foi recuperado e estão contaminados por uma construção, uma maneira de produzir a vida e fabricar a poesia. Poesia no sentido geral e poesia no sentido estrito: o poeta, em sua infância, sabe (ou aprende) que a poesia também é fabricada (“trabalhar é sentir nos próprios calos / toda a razão maior da poesia.”, soneto 6).

No repertório sentimental, Chagas investe em duas concepções de tempo: o primeiro é cronológico e pertence ao calendário (“O tempo rejeitava o calendário”, soneto 11). O segundo é o tempo inserido na concepção do sonho e refere-se a uma época, a da infância sempre aqui reiterativa por ser, obviamente, a matéria temática do conjunto de poemas (“lembrando o tempo em que eu plantava milho”, soneto 12). Um é temporal e outro anímico. Entre um e outro, a figura da mãe, um dos pilares da recordação familiar, que aqui ensina outra disciplina ao poeta: o conhecimento pelo afeto. Estamos no mesmo campo semântico ou temático: a mãe, a fé, o rosário, o tempo imóvel. O poeta não fazia aniversário, que é o tempo cronológico, mas estava envolvido em magia e religiosidade. E a mãe é alçada à condição não mais como a do pai a lavrar a terra e ensinar a dominar o mundo com o trabalho, mas a percepção delicada e “mística” de que “uma fé rolava do rosário / que minha mãe rezava todo dia”.

Mestre nas construções dualísticas que se opõem, no soneto 13, o poeta apresenta dois tipos de arroz, o real e o do sonho. Este último, mostrando sua vocação, era o que mais crescia. E assim vai opondo figuras do mundo real e circundante, como milharal, lavra, plantio chuva, pão a figuras do mundo poético, como sonho, ilusão, esperança e poesia. Essa construção poética que muito me agrada – e, confesso, muito a uso – mostra-se nos versos do soneto 13: “só o plantio da alma é que era tal / que quanto menos chuva mais floria”. No caso aqui estudado, o poeta quer expressar um mundo construído de carências e preenchido pela abundância da poesia. Logo, paz, tempo, fé, alegria e tristeza têm o mesmo peso e estão no mesmo patamar de lavoura, trabalho, mundo visível e natural.

A religiosidade perpassa os poemas e mistura-se à poesia – aliás, todo o fazer humano, incluindo o imaginário do sertanejo –, criando um halo místico e perpetuando maio (“Maio era um mês inteiro de novenas”, soneto 25), a serra que o cercava (“A serra, na paisagem, se fingia / de pedra e era de fato pedra e sonho”, soneto 26), e mais o vento que, por ser matéria volátil, mais se acerca ao invisível poético.

A presença da natureza (flores, vento, paisagem, árvores, rios) emoldura a temática. Contrastante, produzindo a esperança e a desesperança, a natureza inscreve sua presença não apenas como pano de fundo, mas elemento poético em que cada árvore, rio, canteiro e fruta simbolizam, semantizam e oferecem ao leitor uma cornucópia de metáforas. São, pois, os elementos da natureza objeto de comparação ou símbolos singelos da infância e da maturidade antecipada de desenganos (“e um vento de saudade quer que eu leia / mas vê que sou ainda analfabeto”, soneto 23)

Colégio invoca a disciplina e o aprendizado. O vento remete às coisas imponderáveis, mutáveis, pouco afeitas ao rigor das matérias fixas como a pedra. Logo, Chagas investe no movimento dialético de disciplinas, aprender, escolarizar o pouco concreto, o indizível, a emoção e a memória cujo rigor tem outro método.

Outra presença constante na memória do poeta é o engenho, lugar que se fabrica o doce e o amargo da lembrança. Engenho é o lugar que se constrói, que serve para beneficiar o passado e segregar o líquido poético da aventura da infância. Este engenho de Chagas remete à ausência de conflito agrário. Não é o engenho da prosa dos anos 30 e da poesia engajada, mas aqui o engenho fabrica o mesmo campo semântico do labor e da preparação e transformação, porque o engenho é o espaço em que a cana é moída e se transforma em doce amargo da infância. Bom exemplo é este belo poema – cheio de engenho e arte – do poeta Chagas:


É que esse engenho mói a vida inteira,
            e eu me sinto esmagado na moenda
            girada pelos bois, sob a poeira
            que longe na memória se desvenda,
            e me dói a saudade companheira
            do velho engenho agora feito lenda,
            dói-me, em fantasma, a sua bagaceira,
            com o pouco da lembrança que me renda,
            dói-me a ilusão que eu queira e a que eu não queira,
            dói-me ter de seguir a minha senda
            girando como o engenho de madeira,
            mas se o amargo é esse mel feito legenda,
            seja doce a garapa derradeira
            que da saudade moída se desprenda.

                                                           (Soneto 30)



Colégio do vento tem um duplo: o livro Tabuada da memória (São Luís: Sotaque norte, 1994). É um espelho invertido, com a mesma temática do tempo perdido, com a diferença que é construído à semelhança da literatura de cordel. Contudo, se podemos vê-los como uma mesma expressão em dois tons: o baixo e popular x o alto e o erudito, confrontando cordel e soneto, observamos que o livro Tabuada da memória está eivado de construção inusitada e versos bem construídos em sua linguagem “popular” elaborada em redondilha maior. O fenômeno inverso pode-se ver, se bem que em poucos poemas: o tom de literatura de cordel como nos sonetos 32 e 33:


João de Maria Anselmo, meu vizinho,
            tinha toda a pobreza a seu favor
            e alimentava o sonho de, sozinho,
            seguir o seu destino caçador,
            para saber onde ficava o ninho
            e, seguindo o seu sonho de mansinho,
           João expunha ao destino a sua dor,
           indiferente ao que lhe fosse espinhos,
           indiferente ao que lhe fosse flor.
           Eu o perdi de vista em meu caminho,
           mas pobre, seja agora ele o que for,
          faço-lhe este soneto onde adivinho
          que mais do que eu João é merecedor.

                                               (Soneto 32)


            Nos poemas finais (sonetos 39 e 40), o poeta revela sua contraditória e final consideração: aí não há construção, mas imobilismo. Condensação, salinidade, suspensão e açude que represa as águas vão apontar para uma “memória estagnada”, último verso do último poema. De qualquer forma, volume por volume, as manifestações anteriores de força, construção e trabalho se sobrepujam a de estagnação. Vencem as forças da lembrança transformadora, mesmo que o poeta saiba que o passado não se modifica e, sim, o homem que comporta esse passado. O poeta o condensa e revive o doído e presente passado em sua memória delicada.

            Por fim, é lembrar como nos faz bem a verdadeira e boa poesia. Irmana-nos com o cosmo poético, insere-nos no condomínio do mágico e nos reconforta ao partilhar a dor do poeta que nos fez mais humanos quando a poesia é tão elevada e generosa como a do original poeta José Chagas.



(posfácio à 3ª edição do livro Colégio do vento, de José Chagas)