(do livro A cidade na literatura e outros ensaios. São Luís: Edições da Academia Maranhense de Letras, 2016)
Em seu livro Colégio do vento, um pequeno grande A la recherche du temps perdu em forma poética, José Chagas faz uma viagem a sua terra natal: o sonho. É numa ambiência rural que o poeta instaura sua infância trasladada do mundo real para sua poesia. Chagas, exímio sonetista, com dicção moderna da forma petrarquiana, resgata da memória seu espaço lírico por excelência. Esta infância de Chagas não é “real”. Ela habita o poeta como uma fábula, um sonho, uma imagem, uma recorrência da ilusão memorialística que crê apreender a realidade vivida e vive a apreensão da poesia que reconstrói a sua maneira e estilo aquilo que as pessoas chamam passado e realidade.
É extremamente comovedora a ação de busca de
um tempo perdido neste poeta cuja excelência o faz, junto com Nauro Machado, um
dos maiores poetas brasileiros vivos. Poeta que já fez bombardear o silêncio de
uma São Luís também mítica (e que remeto, a quem interessar, ao conceito de
mito que emiti em A ideologia do
personagem brasileiro, ao estudar Macunaíma,
de Mário de Andrade), José Chagas penetra surdamente no reino do sonho. Somente
um ou dois poemas dos 40 apresentados não utiliza a palavra sonho como ponto de
partida e chegada formando uma espiral poética que fere a cada verso a corda
mais melancólica da infância.
A
volta ao passado, visita simbólica, é vivenciada poeticamente. Ergue-se a
pirâmide temática: os pais; a lembrança e o sonho. O pai representa em si toda a
família e todo ser movente e humano (a mãe, o primo, o irmão) e comanda a
órbita do mando afetivo, do exemplo especular e da humanidade primeva. Outra
base, o lugar dito infância, informa o leitor sobre o locus poético, que não é o golçalvino idílico de minha terra tem
palmeiras, nem o lamentoso e saudoso da aurora da vida de Casimiro de Abreu. É
certo que o lugar é o sertão paraibano e que a infância é a infância do autor,
mas ao transmigrar essa realidade para a realidade da poesia esta significa. O
espaço poético da infância é o lugar do perdido, do não recuperado, do início
(no início era o verbo e já era a poesia), do lugar da criação do mundo do
autor. E base terceira, o sonho, revela-se a mais forte e temática: tudo se
constrói a partir do sonho. Tudo remete à poesia. O poeta sonha, o poeta tem
esperança, o poeta poetiza, o poeta já nasce na infância e tudo que o rodeia,
seja rústico, seja comezinho, é passível de ser poetizável.
Se
o poeta utilizou a palavra colégio é porque quer representar um aprendizado. Há
dois tipos de lição aí. A primeira refere-se à iniciação à vida do poeta
envolto no seu mundo rural e, não apenas saudosista, disciplinando a emoção. A
segunda pertence ao aprendizado do sonho, da esperança, do mundo, da poesia. Um
aprendizado também da memória, porque o ato memorialístico requer educação e
“escolaridade” a fim de selecionar as disciplinas do viver e da práxis poética.
Ou seja, aprendizado para selecionar o nostálgico, o memorialístico, o
rememorar emocionado mas não sem sair com uma lição de vida.
O
lugar da utopia de Chagas, a infância, se distancia da utopia da infância ou do
locus utópico dos outros nossos dois
comparados: Gonçalves Dias e Casimiro de Abreu. Em Chagas, o lugar da utopia
está ligado à construção (“O trabalho era fruto do trabalho / e de suor o homem
se fazia”, soneto 5). É um aprendizado de vida e a utopia está mesclada a uma
concepção de mundo que contempla o meio rural e seu modo de viver e trabalhar.
O homem é construído por intermédio do trabalho e o aprendizado da vida é
também instrumentalizado pelo fazer nordestino, mais especificamente o da sua
família e do exemplo paterno. O pai é aquele que fabrica uma visão de mundo e
que opera um aprendizado. A utopia se molda (“Minhas mãos eram donas de seus
calos, / tudo o que do trabalho eu recebia”, soneto 6) como a fabricação humana:
o homem é um ser social e para viver a utopia é preciso também lembrar que a
iniciação e o retorno são dois valores da mesma moeda: o modo de fazer. Sonho,
utopia e lembrança remetem a um passado que foi recuperado e estão contaminados
por uma construção, uma maneira de produzir a vida e fabricar a poesia. Poesia
no sentido geral e poesia no sentido estrito: o poeta, em sua infância, sabe
(ou aprende) que a poesia também é fabricada (“trabalhar é sentir nos próprios
calos / toda a razão maior da poesia.”, soneto 6).
No repertório sentimental, Chagas investe em
duas concepções de tempo: o primeiro é cronológico e pertence ao calendário (“O
tempo rejeitava o calendário”, soneto 11). O segundo é o tempo inserido na
concepção do sonho e refere-se a uma época, a da infância sempre aqui
reiterativa por ser, obviamente, a matéria temática do conjunto de poemas
(“lembrando o tempo em que eu plantava milho”, soneto 12). Um é temporal e
outro anímico. Entre um e outro, a figura da mãe, um dos pilares da recordação
familiar, que aqui ensina outra disciplina ao poeta: o conhecimento pelo afeto.
Estamos no mesmo campo semântico ou temático: a mãe, a fé, o rosário, o tempo
imóvel. O poeta não fazia aniversário, que é o tempo cronológico, mas estava
envolvido em magia e religiosidade. E a mãe é alçada à condição não mais como a
do pai a lavrar a terra e ensinar a dominar o mundo com o trabalho, mas a
percepção delicada e “mística” de que “uma fé rolava do rosário / que minha mãe
rezava todo dia”.
Mestre nas construções dualísticas que se
opõem, no soneto 13, o poeta apresenta dois tipos de arroz, o real e o do
sonho. Este último, mostrando sua vocação, era o que mais crescia. E assim vai
opondo figuras do mundo real e circundante, como milharal, lavra, plantio
chuva, pão a figuras do mundo poético, como sonho, ilusão, esperança e poesia.
Essa construção poética que muito me agrada – e, confesso, muito a uso –
mostra-se nos versos do soneto 13: “só o plantio da alma é que era tal / que quanto
menos chuva mais floria”. No caso aqui estudado, o poeta quer expressar um
mundo construído de carências e preenchido pela abundância da poesia. Logo,
paz, tempo, fé, alegria e tristeza têm o mesmo peso e estão no mesmo patamar de
lavoura, trabalho, mundo visível e natural.
A religiosidade perpassa os poemas e mistura-se
à poesia – aliás, todo o fazer humano, incluindo o imaginário do sertanejo –,
criando um halo místico e perpetuando maio (“Maio era um mês inteiro de novenas”,
soneto 25), a serra que o cercava (“A serra, na paisagem, se fingia / de pedra
e era de fato pedra e sonho”, soneto 26), e mais o vento que, por ser matéria
volátil, mais se acerca ao invisível poético.
A presença da natureza (flores, vento, paisagem,
árvores, rios) emoldura a temática. Contrastante, produzindo a esperança e a
desesperança, a natureza inscreve sua presença não apenas como pano de fundo,
mas elemento poético em que cada árvore, rio, canteiro e fruta simbolizam,
semantizam e oferecem ao leitor uma cornucópia de metáforas. São, pois, os
elementos da natureza objeto de comparação ou símbolos singelos da infância e
da maturidade antecipada de desenganos (“e um vento de saudade quer que eu leia
/ mas vê que sou ainda analfabeto”, soneto 23)
Colégio invoca a disciplina e o aprendizado. O
vento remete às coisas imponderáveis, mutáveis, pouco afeitas ao rigor das
matérias fixas como a pedra. Logo, Chagas investe no movimento dialético de
disciplinas, aprender, escolarizar o pouco concreto, o indizível, a emoção e a
memória cujo rigor tem outro método.
Outra presença constante na memória do poeta é
o engenho, lugar que se fabrica o doce e o amargo da lembrança. Engenho é o
lugar que se constrói, que serve para beneficiar o passado e segregar o líquido
poético da aventura da infância. Este engenho de Chagas remete à ausência de
conflito agrário. Não é o engenho da prosa dos anos 30 e da poesia engajada,
mas aqui o engenho fabrica o mesmo campo semântico do labor e da preparação e
transformação, porque o engenho é o espaço em que a cana é moída e se
transforma em doce amargo da infância. Bom exemplo é este belo poema – cheio de
engenho e arte – do poeta Chagas:
É que esse engenho mói a vida inteira,
e eu me sinto esmagado na moendagirada pelos bois, sob a poeira
que longe na memória se desvenda,
e me dói a saudade companheira
do velho engenho agora feito lenda,
dói-me, em fantasma, a sua bagaceira,
com o pouco da lembrança que me renda,
dói-me a ilusão que eu queira e a que eu não queira,
dói-me ter de seguir a minha senda
girando como o engenho de madeira,
mas se o amargo é esse mel feito legenda,
seja doce a garapa derradeira
que da saudade moída se desprenda.
(Soneto
30)
Colégio
do vento tem um duplo: o livro
Tabuada da memória (São Luís: Sotaque
norte, 1994). É um espelho invertido, com a mesma temática do tempo perdido,
com a diferença que é construído à semelhança da literatura de cordel. Contudo,
se podemos vê-los como uma mesma expressão em dois tons: o baixo e popular x o
alto e o erudito, confrontando cordel e soneto, observamos que o livro Tabuada da memória está eivado de
construção inusitada e versos bem construídos em sua linguagem “popular”
elaborada em redondilha maior. O fenômeno inverso pode-se ver, se bem que em poucos
poemas: o tom de literatura de cordel como nos sonetos 32 e 33:
João de Maria Anselmo, meu vizinho,
tinha toda a pobreza a seu favore alimentava o sonho de, sozinho,
seguir o seu destino caçador,
para saber onde ficava o ninho
e, seguindo o seu sonho de mansinho,
João expunha ao destino a sua dor,
indiferente ao que lhe fosse espinhos,
indiferente ao que lhe fosse flor.
Eu o perdi de vista em meu caminho,
mas pobre, seja agora ele o que for,
faço-lhe este soneto onde adivinho
que mais do que eu João é merecedor.
(Soneto
32)
Nos poemas finais
(sonetos 39 e 40), o poeta revela sua contraditória e final consideração: aí
não há construção, mas imobilismo. Condensação, salinidade, suspensão e açude
que represa as águas vão apontar para uma “memória estagnada”, último verso do
último poema. De qualquer forma, volume por volume, as manifestações anteriores
de força, construção e trabalho se sobrepujam a de estagnação. Vencem as forças
da lembrança transformadora, mesmo que o poeta saiba que o passado não se modifica
e, sim, o homem que comporta esse passado. O poeta o condensa e revive o doído
e presente passado em sua memória delicada.
Por fim, é lembrar como
nos faz bem a verdadeira e boa poesia. Irmana-nos com o cosmo poético,
insere-nos no condomínio do mágico e nos reconforta ao partilhar a dor do poeta
que nos fez mais humanos quando a poesia é tão elevada e generosa como a do original
poeta José Chagas.
(posfácio à 3ª edição do livro Colégio do vento, de José Chagas)
(posfácio à 3ª edição do livro Colégio do vento, de José Chagas)
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