Ronaldo Costa Fernandes
Quem vê no excepcional romance A insustentável leveza do ser um grande livro, por certo se encantará com as leituras e comentários de Kundera. Contudo, o ensaísta Kundera, neste livro, fica aquém do exuberante ficcionista Kundera. Outros autores-críticos, como Borges, ofertam ao leitor “insights” muito mais inquietantes. De qualquer forma, este A cortina traz observações curiosas sobre autores como, entre outros, Flaubert, Tostoi, Gombrowicz, Rabelais, Cervantes, Musil e a relação entre eles. Não é propriamente a paideia de Kundera, mas são aqueles autores que, no seu modo de ver, transformaram a literatura e/ou permitem que o autor tcheco formule algumas de suas inquietações estéticas e culturais.
Não é a única vez que Milan Kundera, tcheco nascido em 1929 e que, desde 1975 vive na França, frequenta as páginas do ensaio. Faz parte de sua bibliografia, as reflexões de A arte do romance e Os testamentos traídos. Neste, A cortina (Cia. das Letras, 159 p.), Kundera inicia vacilante e, logo de cara, nos apresenta uma contradição e um equívoco. Este último refere-se ao não entendimento (mas é possível que um autor como Kundera cometer um equívoco?) do fenômeno da verossimilhança. Quem leu Aristóteles, Barthes, Tacca, Booth, Warren e Wellek, os críticos italianos da Renascença ou do neoclassicismo francês do séc. XVIII, Compagnon, Luiz Costa Lima, Vítor Manuel, Bakhtin, Todorov (a lista seria grande demais), entende o fenômeno da verossimilhança como algo intrínseco à obra. (Abra-se um parêntese: apesar de citar tantos críticos, uma das melhores e concisas definições de verossimilhança o leitor encontrará no verbete do dicionário Aurélio...). Ao etiquetar Kafka com o epíteto de inverossímil (p.71), mesmo elogiando-o, é porque não entendeu, desde Aristóteles que já comentava o maravilhoso em Homero, que a verossimilhança faz parte da obra literária, mesmo que trabalhe com o absurdo, o surreal, o fantástico, o realismo mágico e aparentados.
A contradição cabe à defesa que Kundera faz de uma literatura universal. Já que o romance é uma arte que não distingue fronteiras a não ser as suas próprias, o autor tcheco advoga um romance que tem sua própria história independente de país. “É Cervantes que invoca Fielding sem parar; é Fielding que se compara a Stendhal; é a tradição de Flaubert que se prolonga na obra de Joyce; é na reflexão sobre Joyce que Broch desenvolve sua própria poética do romance; é Kafka que faz García Márquez comprender que é possível sair da tradição e escrever de outra maneira” (p.39). Kundera incorpora a idéia e o termo cunhado por Goethe de die Weltliteratur (a literatura universal). Ao mesmo tempo, Kundera condena aqueles que colocam a república tcheca no saco comum do Leste Europeu. Kundera não quer ser eslavo, luta pela especificidade da literatura de seu país, critica aqueles que não querem vê-lo como ocidental e afirma a inclusão da literatura do seu país na história da cultura do Ocidente.
Mas A cortina tem seu encanto. Primeiro, porque o leitor pode ter contato com a visão do autor predileto sobre a literatura e outros assuntos, o que lhe permitiria entender alguns procedimentos de sua obra. Ou, mostrar a coxia onde é forjada a história de muitos romances: as leituras, influências e conceitos da literatura que este autor carrega consigo ao escrever seus livros. Ainda que os autores nos seus romances, pela forma que se apresentam, deixem escapar ao leitor suas afinidades e suas leituras. Kundera, mesmo que tão tenha o rigor de autores-críticos como Forster, Mario Vargas Llosa (seu livro sobre Madame Bovary bate muitos estudos acadêmicos) ou Nabokov (que tem uma bela e rigorosa exegese sobre Cervantes) alcança momentos preciosos, seja comparando o fluxo de consciência em Joyce e antevendo-o em Ana Karenina, de Tostoi, seja aproximando as várias vozes do romance moderno com a utilização de cartas e a “modernidade” dessa pluralidade nos romances epistolares como As ligações perigosas, de Laclos.
Outro momento especial e que merece destaque são suas observações sobre a burocracia e a mecanização do mundo moderno. Talvez a sua mais aguda observação diga respeito ao entendimento dos fenômenos e das mudanças quando estas estão no início e não quando atingem seu pico. “Deduzo disso uma regra geral: o alcance existencial de um fenômeno social não é perceptível com maior acuidade no momento de sua expansão, mas sim quando ele se encontra em seus primórdios, incomparavelmente mais fraco do que se tornará depois.” Deste ponto de vista, a literatura passa a vigorar de maneira luminosa e permite que se leia autores como Kundera com um olho na literatura e outro nos avatares da humanidade.