Blaise Cendrars, o francês que fez três viagens ao Brasil e conviveu com os nossos modernistas, é o século XX em seu parto. Morravagin, o romance épico-cubista-paródico que escreveu, com fortes conotações sexuais (vagin, vagina), é contudo um romance de um misógino. Considerado um dos cem melhores romances franceses do século passado (80º lugar), Morravagin é um delírio ambulatório, cheio de peripécias próprias do romance de aventuras, com insinuações à psicanálise, ao movimento bolchevique, viagem aos EUA, vinda à América do Sul, comentário sobre a cultura de massas e as teorias estapafúrdias sobre a ciência que povoavam o imaginário dos intelectuais do século que dava seus primeiros passos.
Raymond, o narrador, conta a história de um facínora, amoral, covarde, traidor, morfinômano, anti-herói como Macunaíma (curioso é saber que, embora Macunaíma e Morravagin tenham muito em comum, Cendrars não leu Mário nem Mário leu Cendrars, segundo M. T. Freitas). O personagem do romance francês nasce nobre ( “último descendente do rei da Hungria” ), comete assassinatos ( “a vida é o crime, roubo, a inveja, etc” ), entra para o movimento anarco-comunista da Rússia pré-revolução e termina seus dias num sanatório para loucos, onde se tratam as “doenças da vontade”. Aliás, o romance começa e termina em clínicas de insanos – era a onipresença da psicanálise.
As aventuras são inverossímeis e cheias de lugar-comum – Cendrars mesmo aponta a influência do herói Fantômas, personagem de histórias populares levadas ao cinema, aos quadrinhos. O que salva o romance é justamente o que não é romance: as disparatadas digressões do autor. Feitas com ironia, deboche, paródia, com grande qualidade literária, as digressões destoam do clima popularesco e de aventura barata e cria um dialogismo não entre livro x livro, mas uma grande e gigantesca intertextualidade com o primeiro quartel do século vertiginoso que coube a Morravagin aventurar-se a viver.
Ainda há mais literariedade transgressora: ao final, Cendrars inclui o capítulo “os manuscritos de Morravagin”, onde estão desenho, rabiscos, paranóia acerca dos marcianos, e, por fim, uma introdução ao infilmável roteiro chamado "O fim do mundo, filmado pelo Anjo de Notre-Dame", script que, junto com Morravagin, dá uma outra visão delirante do texto.
Para quem quer ver o confronto modernidade x pós-modernidade, Morravagin é o protótipo do primeiro, com suas grandes verdades e humanismos, sua paródia escrachada, seu verbo vanguardista e iconoclasta, sua visão épica e caleidoscópica, sua vertente centralizadora e totalizante.
Cendrars era homem inquieto, queria estar em todos os lugares, participar de todos os eventos. Uma das suas aventuras o leva a engajar-se na Primeira Guerra Mundial, quando perderá o braço direito. Morravagin sofre o mesmo mal: a vertigem do movimento. O romance é uma montagem – muito também devido ao grande espaço de tempo entre o início de sua redação, 1913, até a sua conclusão, 1925 – sem que se perca o fim condutor narrativo. Raymond é um narrador que se anula para falar de Morravagin, que por sua vez não é o personagem principal do livro: o protagonista de Morravagin são as idéias que pululam e agitam o momento histórico em que o romance é escrito.
Poderíamos ser levados para uma concepção de Morravagin como uma estética do romance dentro do romance. Mas não é o caso, o que existe aqui é uma impossibilidade de afirmação narratória. O autor constantemente nos confunde, coloca-se como personagem, muda autorias. É um romance que recusa um reconhecimento de uma só voz. Está presente também a questão do Outro. Cendrars tem o propósito claro de ironizar a própria literatura e seu valor canônico.
A Modernidade quis construir seu humanismo às avessas, criticando não somente o pequeno-burguês ( há uma crítica feroz de Cendrars ao apascentamento do espírito burguês na França e na Inglaterra), mas também pela via transversa do bizarro (herança baudelaireana), do escândalo, da perversão. Uma característica que a pósmodernidade perdeu foi a “tradição da ruptura” ( Octavio Paz ) que combinava a atitude rebelde com o ineditismo de afirmações bombásticas como, no caso de Morravagin, escrever que a civilização nasceu no Amazonas e que, em vez de avançarmos para o Extremo Oriente temos que descobrir o Extremo Ocidente.
Morravagin, ao contrário da misógina morte da sexualidade, é um libelo histriônico de revolta, indignação e espírito de erotismo pulsante: a vida.
imagens retiradas da internet: centre de etudes blaise cendrars
Blaise Cendrars por Modigliani |
Blaise Cendrars, o francês que fez três viagens ao Brasil e conviveu com os nossos modernistas, é o século XX em seu parto. Morravagin, o romance épico-cubista-paródico que escreveu, com fortes conotações sexuais (vagin, vagina), é contudo um romance de um misógino. Considerado um dos cem melhores romances franceses do século passado (80º lugar), Morravagin é um delírio ambulatório, cheio de peripécias próprias do romance de aventuras, com insinuações à psicanálise, ao movimento bolchevique, viagem aos EUA, vinda à América do Sul, comentário sobre a cultura de massas e as teorias estapafúrdias sobre a ciência que povoavam o imaginário dos intelectuais do século que dava seus primeiros passos.
Raymond, o narrador, conta a história de um facínora, amoral, covarde, traidor, morfinômano, anti-herói como Macunaíma (curioso é saber que, embora Macunaíma e Morravagin tenham muito em comum, Cendrars não leu Mário nem Mário leu Cendrars, segundo M. T. Freitas). O personagem do romance francês nasce nobre ( “último descendente do rei da Hungria” ), comete assassinatos ( “a vida é o crime, roubo, a inveja, etc” ), entra para o movimento anarco-comunista da Rússia pré-revolução e termina seus dias num sanatório para loucos, onde se tratam as “doenças da vontade”. Aliás, o romance começa e termina em clínicas de insanos – era a onipresença da psicanálise.
As aventuras são inverossímeis e cheias de lugar-comum – Cendrars mesmo aponta a influência do herói Fantômas, personagem de histórias populares levadas ao cinema, aos quadrinhos. O que salva o romance é justamente o que não é romance: as disparatadas digressões do autor. Feitas com ironia, deboche, paródia, com grande qualidade literária, as digressões destoam do clima popularesco e de aventura barata e cria um dialogismo não entre livro x livro, mas uma grande e gigantesca intertextualidade com o primeiro quartel do século vertiginoso que coube a Morravagin aventurar-se a viver.
Ainda há mais literariedade transgressora: ao final, Cendrars inclui o capítulo “os manuscritos de Morravagin”, onde estão desenho, rabiscos, paranóia acerca dos marcianos, e, por fim, uma introdução ao infilmável roteiro chamado "O fim do mundo, filmado pelo Anjo de Notre-Dame", script que, junto com Morravagin, dá uma outra visão delirante do texto.
Para quem quer ver o confronto modernidade x pós-modernidade, Morravagin é o protótipo do primeiro, com suas grandes verdades e humanismos, sua paródia escrachada, seu verbo vanguardista e iconoclasta, sua visão épica e caleidoscópica, sua vertente centralizadora e totalizante.
Cendrars era homem inquieto, queria estar em todos os lugares, participar de todos os eventos. Uma das suas aventuras o leva a engajar-se na Primeira Guerra Mundial, quando perderá o braço direito. Morravagin sofre o mesmo mal: a vertigem do movimento. O romance é uma montagem – muito também devido ao grande espaço de tempo entre o início de sua redação, 1913, até a sua conclusão, 1925 – sem que se perca o fim condutor narrativo. Raymond é um narrador que se anula para falar de Morravagin, que por sua vez não é o personagem principal do livro: o protagonista de Morravagin são as idéias que pululam e agitam o momento histórico em que o romance é escrito.
Poderíamos ser levados para uma concepção de Morravagin como uma estética do romance dentro do romance. Mas não é o caso, o que existe aqui é uma impossibilidade de afirmação narratória. O autor constantemente nos confunde, coloca-se como personagem, muda autorias. É um romance que recusa um reconhecimento de uma só voz. Está presente também a questão do Outro. Cendrars tem o propósito claro de ironizar a própria literatura e seu valor canônico.
A Modernidade quis construir seu humanismo às avessas, criticando não somente o pequeno-burguês ( há uma crítica feroz de Cendrars ao apascentamento do espírito burguês na França e na Inglaterra), mas também pela via transversa do bizarro (herança baudelaireana), do escândalo, da perversão. Uma característica que a pósmodernidade perdeu foi a “tradição da ruptura” ( Octavio Paz ) que combinava a atitude rebelde com o ineditismo de afirmações bombásticas como, no caso de Morravagin, escrever que a civilização nasceu no Amazonas e que, em vez de avançarmos para o Extremo Oriente temos que descobrir o Extremo Ocidente.
Morravagin, ao contrário da misógina morte da sexualidade, é um libelo histriônico de revolta, indignação e espírito de erotismo pulsante: a vida.
imagens retiradas da internet: centre de etudes blaise cendrars