sexta-feira, 19 de outubro de 2018

De Verdade, Sándor Márai




“Não é fácil contar. É como se eu quisesse falar sobre o nada. Acho que na vida só podemos contar algumas coisas... quero dizer, na vida mais simples, cotidiana. Porque, você sabe, existem pessoas que não vivem apenas no dia-a-dia, mas também de outro modo, numa realidade diferente... Elas talvez consigam falar sobre nada com o mesmo interesse que desperta uma história policial.” Esse é um trecho do romance De verdade, de Sándor Márai.
Márai (1900-1989) escreveu várias narrativas e deixou também uma autobiografia intitulada Confissões de um burguês, que chega a ser tão sedutora e “ficcional” como toda sua obra. Famoso na Hungria nos anos 30 e 40, Márai, em 1948, foge do domínio soviético-stalinista da Hungria. Cai no limbo do esquecimento. Mais tarde, fixa residência no EUA. Em 1989, em San Diego, onde se recolhera, suicida-se com um tiro na cabeça. Esse fênix húngaro retorna com força total, mostrando uma literatura sombria, perversa e irônica. Sándor não desonra a tradição do anarquismo literário de autores de países próximos como o franco-romeno Ionesco ou mesmo o polonês Gombrowicz.
De verdade é um romance que trabalha com quatro vozes narrativas. A esposa, o marido, a amante e o amante da amante. Todos contam um casamento falido a partir de suas próprias vivências. Em verdade apresenta não apenas quatro versões do mesmo fato, repertório já utilizado antes mesmo da década de quarenta do século XX, mas enfatiza a suspeição de que os fatos não podem ser apreendidos a não ser em sua limitada existência por intermédio das experiências e da memória individual.
Há na literatura do século XX um expediente que não é novo, mas foi levado às últimas conseqüências: a digressão. Proust a faz sua grande personagem e trama. Em Sándor Márai, a digressão não chega a ser proustiana, mas existe o gosto de contar e o gozo da palavra, porque, ao fim e ao cabo, a literatura não passa de um fruir da palavra escrita. Márai abusa, no bom sentido, da sedução da palavra. Não há muito para contar, não há uma história fabulosa, surpresas inesperadas, turnings points de tirar o fôlego. Já disse em outro artigo, que tais elementos a comunicação de massa os cumpre muito bem. A boa literatura pode ou não utilizar-se desses elementos. Mas pode sobreviver sem eles e, pelo contrário, construir trama com mínimos traços e ser bastante eloquente. De verdade é um grande romance, em que a palavra é o personagem principal. A estesia que os bons leitores sentem com um bom narrar – não propriamente boa história, pirotécnica, cheia de tramas intrincadas – é o que faz em verdade um romance genial. O que nos leva a crer que, entre outras definições do ato de ler, uma delas é a capacidade do leitor de sofrer o que classifico aqui, com inteira irresponsabilidade terminológica, de “síndrome de Sherazade”, ou seja, ser embalado pela palavra que fascina.
Mesmo sendo prosa realista, o humor de Márai beira o absurdo. Afasta-se do psicologismo e da ridicularização da condição do burguês e penetra num mundo desconcertante. Nas duas últimas partes, a ironia está próxima do nonsense. Serve de exemplo a descrição do cotidiano de uma Budapeste arrasada pelo bombardeio dos aliados, pelos nazistas e, logo depois, pelo exército stalinista dito salvador. Entende-se então o silêncio feito em torno de seu nome durante o período comunista da Hungria.
Nos dois primeiros discursos e parte do terceiro (ou seja, da esposa, do marido e da empregada) existem considerações sobre o que são e representam o amor, o casamento, a solidão, a condição burguesa, a mecanização dos atos humanos, o sem-sentido dos atos. O quarto discurso é feito por um baterista, já nos EUA. É a parte mais recente do livro, cinqüenta páginas escritas em 1979. O ritmo é curioso e a linguagem mistura com ironia o inglês e modo de vida americano. O baterista conta sua fuga do regime comunista da Hungria. Mas não o narra de forma dramática ou triste. Conta em tom de farsa. O que encanta em Sándor Márai de Em verdade é sua capacidade de extrair de uma situação normal um drama entre satírico, burlesco, fantástico e alucinatório quando tudo não passa de situações absolutamente corriqueiras e realistas. Ganham a humanidade e a cultura toda vez que a crítica e os leitores recuperam um autor genial como Sándor Márai.

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Vulcão, poema RCF


Vulcão na forja, Giorgi Vasari

Os vulcões têm sangue quente.
Os lençóis freáticos,
ao contrário, mostram
que nas terras antigas
corre sangue frio.
O homem traz dentro de si
o ódio de lava dos vulcões
ou o sangue frio dos répteis
escondidos.
Os raios, espadas de eletricidade,
são desembainhados nas nuvens.
O pior raio do homem
é quando ele se incinera.
O ódio, que é espada e raio,
o atravessa de cima a baixo,
o corpo galvanizado de fúria.
A tempestade não me interessa,
já tenho bastante lava dentro de mim.
Minha eletricidade
é uma espada que carrego comigo
para o trabalho, o shopping, o cinema.
Também tenho meu lençol freático.
Minhas lágrimas, que seriam
meu sangue frio,
são olhos d’água salgada.             


(do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)                                                   

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

A nuca, conto RCF


 

Uma máquina de carne e osso não tem vaidade. Gestos mecânicos são o diabo. O espelho também tem algo de mecânico. Meu pensamento talvez seja mecânico: ideias não nascem assim de repente. Posso exercitar minha imaginação como se houvesse uma barra. Uma saída é sempre um músculo bem forjado que pode suportar um peso inesperado.
Se um dia não aparecer no trabalho, quando darão pela minha ausência? Costumo considerar as coisas em sua fluidez.
Não gosto de andar, não gosto de deslocamentos. Talvez minha vocação de imobilidade tenha nascido da minha capacidade, caso queira, de não pensar em nada. Dirão: não há como esvaziar a consciência.
O espelho, por exemplo, é que forma de deslocamento?
Meu corpo é desnecessário.
Moro perto do serviço. Ando alguns metros. Entro no edifício. Subo. Ao fim da tarde, o percurso inverso. Banho-me três vezes ao dia. Tenho aversão a tudo que se pega em mim. O terceiro banho não é de água: álcool. Esfrego o corpo com substâncias desinfetantes. Se algo apodrece é por dentro, onde não posso alcançar. A ideia de que algo está fora de meu controle me enlouquece.
Percebo certo constrangimento da imagem. Não o fazia por uma mágica qualquer que o eletrizava. Era independente de mim. Apenas punha-se lívido e decente em seu quadrado abandono.
    Só tenho dois horários: o acordado e quando durmo. Enquanto me movimento, alimento-me às horas mais extravagantes, ou não como; outras, fico desperto pela noite, insone, faço refeições pesadas; no trabalho, não sei se chove ou faz sol. Se me perguntarem de repente se meu rosto é redondo ou fino, demorarei a responder. Quando criança meu rosto era redondo; mais velho, afinou. Não sei definir meu rosto de hoje. Esta perda dos traços não me inquieta. Até mesmo me conforta. É como se o corpo fosse desnecessário e só trouxesse dano. Não há exagero nem gestos. Acompanho minhas mãos. Jamais faço gestos amplos, como abrir os braços, jamais gestos expansivos, agitados, nunca vi minhas mãos tremerem. Falo com os braços caídos. A vida não é para ser vivida de braços estendidos. Deus é um círculo. Não gosto de pensar em religião. Nem tenho religião. Se Deus existir deve ser liso como uma bola. Por que não inventaria outra forma para a Terra? Há momentos de nostalgia. Mas logo me controlo. Não sei se ainda tenho lágrima. Tenho nojo à lágrima. Subo e desço, subo e desço, meu movimento de ascensão e queda é mais constante – poderia dizer vertical – que minha vida plana.  Não tenho relógio. Meus chefes – ou meu chefe, já que perdi não a noção do tempo, mas a noção ordinária de hierarquia – não estão preocupados com o cartão de ponto. Querem o relatório. E o relatório, eu o entrego regularmente como defeco ou tenho sede. O relatório passou a ser orgânico, biológico, visceral, enfim, circular. Às vezes penso em mim sem pernas. De tanto ficar sentado, ela se anestesiam. A dormência toma todo corpo e logo não o tenho mais. Oh Deus, não tenho mais fibras, membros, dedos, nariz, extremidades, sou apenas abstração.
Nunca antes conheci carrapato. Agora os bichos me infectam pela noite. O que de mais íntimo tenho me trai. Não posso confiar em mim mesmo. Olho o bicho – será mesmo carrapato? Quem me disse que tenho, entre colchões, um carrapato? Não conheço ninguém que tenha carrapato que parece ser bicho antiquado. Mas as doenças retornam. As doenças vivem incubadas na medicina e no tempo. Se não é carrapato, o bicho que tenho pregado à minha pele, que protozoário vem a ser? Que espécie de bicho é carrapato?
Quem se importa, trancado no sótão, se estou barbeado ou com barba de três dias? Minha pele é feita de couro delicado. Penso em mim outra vez por dentro. Esta mesma delicadeza cobre meus órgãos? Esta mesma finura e sensibilidade da pele são o que constitui o exterior do meu interior?
Agora o desconhecido não me olha, retribuindo minha ausência.
Ao mesmo tempo, o desconhecido parece introduzir-se em outro recinto, como se saísse do banheiro. Não me vira o rosto. Sei que toma conta de mim, embora já não haja nem mesmo olhar de esguelha. A certeza de que está ali permanece comigo até no sótão, incomoda-me a ponto de não poder redigir os intermináveis relatórios que, sei, serão jogados no lixo. Esta é a rotina: produzir montanhas que são destruídas com o gesto inútil de terra arrasada. Por que então me pagam? Cheguei a pensar em não escrevê-los mais.
Certa vez, por doença, deixei de entregar os relatórios. Ao contrário do que pensava, reclamaram. Tenho de produzi-los, mesmo que não os leiam. Agora não posso escrever porque a imagem indiferente – ou melhor, fingindo indiferença –, a imagem do desconhecido me persegue. Que preço tenho? Valho o meu salário? Por que, nesta altura da vida, tenho que me inquietar com questiúnculas? Meu medo é o da perda. Já ando sem corpo. Às vezes sonho que minha cabeça bóia na água. Alguém me puxa pelos cabelos e não vem corpo algum.
Faz cinco anos que não tenho contato com o chefe – ou os chefes –, nem sei mesmo se continua o mesmo. Agora o desconhecido vira-se de costas. Posso livremente olhar-me ao espelho, porque só vejo sua nuca. O desconhecido no espelho sou eu. Mas, com a diferença que me vejo de costas. É um pescoço delgado. Cabelo crespo se acanha sob a base do crânio. Não tenho aversão ou horror à minha imagem de costas. Pelo contrário, não me sinto vigiado e, como disse, posso livremente olhar-me ao espelho, embora tudo o que tenha de mim seja apenas a nuca. Por que me vira as costas? Mesmo sem relógio, sei que estou atrasado. Há dias que preparo um longo relatório. O desconhecido tem a nuca despida, ou seja, não veste camisa, não lhe aperta o colarinho. Orgulho-me dos relatórios. Que horas devem ser no escritório? Pobre daquele que acredita que em dois lugares distintos na mesma cidade a hora é a mesma.

(do livro Manual de tortura. Brasília: Esquina da palavra, 2007)

terça-feira, 16 de outubro de 2018

Obstáculos reais ou imaginários, poema RCF



 foto | reuben wu


Chove um pé d’água de diáspora
e embacia o vidro em que o homem vive
no eterno carro do seu corpo
que avança sob vendaval.
Vê homens líquidos
atrás do vidro deliquescente
que dissolve árvore, rua,
e mais que rua, os caminhos.
Avança no aguaceiro dos sentidos.
O dedo longo do limpador
de para-brisa lhe diz não
para a vida além do vidro.
O chão é feito de água
e se encharca de memória.
Há obstáculos por toda paisagem molhada
como molhada e cheia de obstáculos
é o passado que o impede ver adiante.
Os obstáculos são reais ou imaginários,
o que nada muda porque continuam a ser obstáculos,
pois embora não os vejamos
supor já é fazê-los existir.





(foto:reuben wu)

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Calor dos dias escarlates

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Esse calor intenso
enche de dunas a vontade.
Aos poucos o sol
tempera as águas
e o homem
não sabe sobreviver
à fervura das ansiedades.
Viver é estar sujeito à temperatura dos fatos.
Transformaremos o suor
do medo em metáfora
porque é mais fácil
suportar a imagem
que a fervura da realidade.



(O difícil exercício das cinzas. 2014)

domingo, 14 de outubro de 2018

O contágio da vida




 


Ninguém está livre da vida.
A vida é altamente contagiosa.
Há de se evitar as aglomerações
como estádios de futebol ou shows
onde a vida se multiplica,
onde a vida é multidão.


Não há remédio contra a vida.
Em certos momentos de paz,
ela se espalha
como vírus vital
ou tumor de felicidade.


Não há repouso – pelo contrário –,
prevenção ou medida sanitária.
Ela mesma parece vitimar-se
do sono, do bem estar abundante
e sobrevive muito forte
em ambientes limpos e higienizados.


Nada se pode fazer contra a vida.
Senão adoecer-se dela,
viciar-se nela, acostumar-se
com seus sintomas.


Sendo assim, e só tendo a morte
que a contenha,
o paciente deve entregar-se
à moléstia da vida
e contaminar-se
com a infecção do gozo
que penetra primordialmente a alma,
lá onde cirurgião nenhum pode extirpá-la.



(do livro O difícil exercício das cinzas. Rio: 7Letras, 2014)

imagem: Iara Zaukoul