sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

AMÁLIA BAUTISTA-POESIA ESPANHOLA CONTEMPORÂNEA



Nudez de mulher



Para ti nunca fui mais que um pedaço
de mármore. Esculpiste no meu corpo
um corpo de mulher branco e bonito,
nele não vislumbraste mais que pedra
e o orgulho, esse sim, de teu trabalho.
Jamais imaginaste que te amava
e que me estremecia, quando, doce,
moldavas meus seios e meus ombros,
ou alisavas minhas coxas e meu ventre.



Amalia Bautista nasceu em Madrid, em 1962.
O poema, extraído de Cárcel de amor,
narra a paixão da estátua pelo seu escultor.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

ALFREDO BOSI ESCREVE SOBRE LIVRO DE ANTONIO CARLOS SECCHIN



        MEMÓRIAS DE UM LEITOR DE POESIA
                Para os bibliófilos o nome de Antonio Carlos Secchin está associado a um dos  nossos maiores amadores de livros de Literatura Brasileira . As raridades da sua biblioteca particular são pasmosas: vão de originais de um Drummond anteriores à sua estréia como poeta até exemplares únicos de obras de Cecília Meireles e João Cabral de Melo Neto. Ainda bem que temos em nossa língua a paradoxal expressão “santa inveja”; caso contrário, cairíamos todos naquele ignóbil pecado mortal que consiste em “entristecer-se com os bens alheios”, como o definiu com  a sua costumeira precisão Santo Tomás.
      Para sorte dos que amam um livro  não só pelo apuro gráfico  ou pelo  caráter de exemplar raro, mas também pelos seus dons de expressão  e pensamento, Antonio Carlos Secchin é sobretudo um leitor de poesia. Há uma palavra que define exatamente a sua relação com a obra poética: fidelidade. Fiel à dupla dimensão de criador e crítico, Secchin deu-nos  a sua poesia em Todos os ventos (2002), organizou com  notória competência acadêmica edições de poesias completas de Cecília Meireles (2001), João Cabral e Ferreira Gullar (2008), escreveu um dos mais completos estudos de análise e interpretação do criador de Morte e vida severina  ( João Cabral:a poesia do menos, 1986)e reuniu suas páginas críticas em Poesia e desordem (1996) e Escritos sobre poesia & alguma ficção (2003).
  Chegou  também para o nosso animoso leitor crítico  o tempo de lembrar.  Tempo de recolher ensaios compostos em épocas distintas sobre distintos autores, que tem para o seu olhar um encanto e um poder de sedução recorrente. Nessas Memórias de um leitor de poesia, publicadas em coedição pela Academia Brasileira de Letras e pela Topbooks,  lemos textos de cunho teórico e pedagógico  que alternam com exercícios de análise literária.
         O ensaio de abertura dá o título ao livro. Trata-se da edição de uma aula inaugural proferida em 2004  na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro -  belo depoimento em que o mestre  recapitula o seu itinerário de leitor  apaixonado de ficcão e poesia.  Uma lembrança do Antonio Carlos ginasiano é digna de citação, pois remete a uma dessas experiências que acabariam definindo uma vocação:
         “... uma professora de português anunciou que iria apresentar a poesia moderna, e, sem nenhuma preparação, atirou sobre a turma   “No meio do caminho”, de Drummond, evidentemente para obter a gargalhada coletiva. Mas ali, em meio à quase unanimidade do escárnio, percebi um novo ritmo, uma nova tonalidade, bem diferente da velha melodia que predominava nas antologias ginasianas. A partir de uma cena montada para ridicularizar a poesia moderna frente aos jovens e parnasianos ouvidos da turma, fui atraído  pela beleza estranha daquele discurso, seduzido pela força da poesia, no início de uma viagem sem fim”. 
         À memória segue-se uma reflexão de notável alcance crítico: “Quando hoje me dizem que não há saída para a poesia, respondo que a poesia só tem entrada, e nos convida a caminhos que jamais supúnhamos existir”.  São esses caminhos longamente palmilhados pelo professor Antonio Carlos Secchin que o levaram a fazer o inventário dos métodos de análise de texto, cerne desta alocução universitária. .  Da rememoração dos anos de aluno de Letras nos anos 70 ficou uma apreciação lúcida do estruturalismo, que ele enfrentou com espírito crítico, diferentemente dos epígonos em geral surdos ao verdadeiro encanto da linguagem da lírica,  que é musical e emotiva e, ao mesmo tempo, profundamente enraizada na História.  Secchin, embora sempre sensível às características formais do poema, jamais descurou dos trabalhos da interpretação, que remetem a forças subjetivas e a contextos sociais e culturais. Recomendo a todos os professores de Literatura que leiam com atenção essas páginas ricas de pistas para orientar os estudantes de Letras tantas vezes perdidos em especulações estéreis que inibem a relação  existencial  do leitor com o texto poético.
         As Memórias de um leitor de poesia não se limitam ao discurso entre crítico e pedagógico. Depois desse verdadeiro preâmbulo, abre-se um leque de análises de cunho estético e lato sensu cultural. Aqui é patente o embaraço da escolha. Atente-se para a riqueza de dados e observações que o autor prodigaliza quando se abeira do Romantismo brasileiro, colhendo frutos novos em solo já largamente arado pela nossa historiografia literária.  Merece relevo, pela originalidade do tema escolhido,  o ensaio  Pátria, Portugal, Poesia, em que Secchin explora a ambiguidade dos poetas românticos brasileiros em face do legado de Portugal.   Não conheço nenhum estudo de caráter comparativo que haja penetrado, como este, nos labirintos de nossa relação afetiva e literária com  a imagem de Portugal,  que ora aparece aureolada  mãe-pátria, ora se vê rejeitada como madrasta,  matriz da opressão colonizadora.   Doravante os  Estudos Culturais deverão contar com esse exemplo de pesquisa histórica e ideológica,   que mantém o necessário equilíbrio no ajuizamento das fontes.
      Ainda na esfera do Romantismo brasileiro o ensaísta se debruça sobre a figura singular de Fagundes Varela, poeta que conseguiu o tento raro de ser ao mesmo tempo original e epigônico. Original pelo frescor do verso, aqui e ali cadenciado em módulos populares; epigônico por força  da malha cronológica, pois, escrevendo nos anos 60, sucedeu aos poetas da segunda geração  herdando-lhes os principais  temas e motivos.   No entanto, prefaciando a sua excelente antologia do poeta, Secchin retificou a fortuna crítica de Varela que insistia no teor repetitivo da sua obra. Agora, em vez do romântico tardio, temos  um Varela, poeta de oito faces, ensaio  que me é particularmente caro, pois tenho sido, desde a adolescência, um comovido leitor do “Cântico do Calvário”, essa obra-prima do lirismo em nossa língua. E nunca me saiu da memória este verso que Antonio Carlos cita entre tantos que colocou sob a rubrica do motivo “Quem sou”: Quem de si mesmo desterrar-se pode?    O ensaísta desdobra para instrução e encanto do leitor um Varela cívico e abolicionista, um Varela ensimesmado à procura de uma fugidia identidade, um Varela amante da natureza tropical e fino paisagista, um Varela sentimentalmente cristão, um Varela amante da beleza feminina, um Varela  que pensa a grandeza e os limites da própria poesia; enfim, um Varela capaz de perguntar-se sobre o enigma da morte e do além.
         A fidelidade à poesia em Secchin também é responsável pela sua capacidade de voltar-se   não só para  valores consagrados da nossa modernidade literária, Cecília Meireles, Drummond, João Cabral, mas também para temas ingratos como a presença do Parnaso e a obra esquecida de um Mário Pederneiras.  Para aqueles, numes da poesia do século XX,  o crítico dedica  autênticos exercícios de análise estilística em que encontramos não poucos achados críticos.  Para os últimos, aos quais  a virulência  da polêmica modernista não terá feito porventura a devida justiça, o ensaísta reserva páginas de ponderada  historiografia literária: um discurso que pesa cuidadosamente o que  pereceu e o que resistiu à usura do tempo.
         “A glória é o sol dos mortos”. A frase lapidar é de Victor Hugo. Vale para todas as rememorações que se fazem para trazer de novo à luz, ainda que efemeramente, a imagem e a palavra dos que nos precederam no amor às letras e que tem o direito de esperar pelo nosso reconhecimento. O discurso com que Antonio Carlos Secchin tomou posse  na Academia Brasileira de Letras, aos 5 de agosto de 2004, é exemplo desse preito solene à memória dos  confrades que o antecederam : o fundador da Cadeira n. 19, Alcindo Guanabara, e os sucessores, D. Silvério Gomes Pimenta, Gustavo Barroso, Antônio da Silva Melo, Américo Jacobina Lacombe e Marcos Almir Madeira.
Ciente de que,valorosos no cumprimento de suas respectivas vocações de homens públicos e estudiosos do Brasil,  nenhum deles fez da Literatura o seu ofício principal, o novo acadêmico traçou com galhardia o perfil de cada um, realçando o empenho  com que souberam, como na parábola evangélica, multiplicar os seus talentos.  De todo modo, é sempre o poeta e leitor de poesia que fala.  Por isso, abre a sua alocução  com estes belíssimos versos de Cecília Meireles: Como os poetas que já cantaram,/ e que ninguém mais escuta,/eu sou também a sombra vaga/de alguma interminável música.  Somos todos elos de uma melodia em aberto, daí a expressão perfeita da interminável música, que dá o título ao texto. E, porque intérmina, essa cadeia também cabe ao poeta imaginá-la , e esse poeta é Carlos Drummond de Andrade, com que antes se entreabre do que se cerra o discurso  de Antonio Carlos Secchin:
      Ó vida futura! nós te criaremos.
        
           Alfredo Bosi  

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

LUCIA MIGUEL PEREIRA POR SEU SOBRINHO

Fábio de Sousa Coutinho
O escritor, advogado e bibliófilo Fábio S. Coutinho pesquisa a vida e a obra de uma das escritoras e críticas mais conceituadas da literatura brasileira.

Miguel Pereira, o grande médico brasileiro das duas primeiras décadas do século passado, teve uma vasta prole. Lucia Vera, ou apenas Lucia, como ela mesma se encarregou de simplificar, foi a segunda de seus seis filhos, precedida apenas pela irmã Helena. Nascida em 12 de dezembro de 1901, era mineira por acaso. Sua mãe, para fugir do calor do verão do Rio de Janeiro, passava uma temporada em Barbacena, quando deu à luz, sem tempo de voltar ao Rio para fazê-lo, como era seu desejo.
“Carioca de Minas”, Lucia Miguel Pereira nasceu no mesmo 1901 em que vieram ao mundo o romancista paraibano José Lins do Rego, os mineiros João Alphonsus (contista), Abgar Renault e Murilo Mendes (poetas), o escritor paulista Antônio de Alcântara Machado e a maior voz feminina da poesia de língua portuguesa, a carioca Cecília Meirelles. Se se tratasse de vinhos, poder-se-ia dizer que 1901 foi o ano de uma bela safra. Como se cuida de criaturas humanas, é lícito afirmar que, ao lado de Zé Lins, João Alphonsus, Abgar Renault, Murilo Mendes, Alcântara Machado e Cecília, Lúcia compõe uma verdadeira geração, das melhores e mais vigorosas de que se tem notícia na Literatura Brasileira.
O primeiro trabalho literário de Lucia Miguel Pereira foi publicado numa revista que as antigas alunas do Colégio Sion fundaram no Rio de Janeiro, chamada ELO. Lúcia tinha vinte e cinco anos e começou a escrever sobretudo artigos em que procura transmitir impressões de leitura. O ensaio sobre Euclides da Cunha, sob o título de UM BANDEIRANTE, foi publicado no número 3 da ELO, em setembro de 1927. Antes, saíra outro, sobre ISABEL, A REDENTORA. Datam, porém, da fundação do BOLETIM DE ARIEL, a excelente revista literária dirigida, em sua fase inaugural, a partir de 1931, por Gastão Cruls e Agrippino Grieco, os primeiros artigos de Lúcia para uma publicação especializada. 

(Lucia, Dinah, Adalgisa e Rachel de Queiroz)

A estreia de Lucia como romancista, com MARIA LUISA e EM SURDINA, ambos de 1933, e a consolidação de sua atuação como crítica literária nas páginas do Boletim de Ariel deram a ela um prestígio e uma visibilidade que marcaram seu ingresso na etapa balzaquiana da vida. O ano de 1934 assinala a inauguração de uma loja Art Déco na Rua do Ouvidor, 110, em pleno coração do Rio de Janeiro: a recém criada Livraria José Olympio Editora. Nessa livraria, que Lúcia passou a freqüentar desde a instalação, ela encontrou outras duas mulheres talentosas e à frente de seu tempo: a linda viúva Adalgisa Nery e a jovem Dinah Silveira de Queiroz. Alguns anos mais tarde, em 1939, juntou-se a elas uma escritora cearense de trinta anos incompletos, Rachel de Queiroz, já consagrada pelo romance regionalista O QUINZE, publicado em 1930, no mesmo ano em que Rachel completou vinte anos de idade.
Lucia Miguel Pereira era uma morena atraente e a encarnação da intelectual sofisticada. Despertou, logo, a atenção de Octavio Tarquínio de Sousa, historiador e Ministro (depois, Presidente) do TCU. Octavio era um dos melhores amigos de José Olympio e um dos seus mais importantes colaboradores. A apresentação da solteira Lucia ao quarentão desquitado Octavio coube a Augusto Frederico Schmidt, outro freqüentador  do 110 da Rua do Ouvidor  e amigo dos dois escritores.
Quem pode desvendar os mistérios do coração? O fato é que o namoro de duas pessoas tão sensíveis e cultas logo se tornou união permanente, indo o casal viver numa casa no n° 160 da Rua Inglez de Souza, no alto do tranquilo bairro carioca do Jardim Botânico. Ali ficaram até 1948, quando se mudaram para uma bela cobertura no recém-inaugurado e moderníssimo conjunto do Parque Guinle, projetado por Lúcio Costa.
O casal gostava de receber e transformou suas residências do Jardim Botânico e de Laranjeiras em democráticos pontos de encontro da intelectualidade da então capital da República. Entre os frequentadores estavam desde expoentes do pensamento católico, como Alceu Amoroso Lima, até o comunista Astrojildo Pereira, que colaborava na REVISTA DO BRASIL, dirigida por Octavio, e que em diversas ocasiões refugiou-se na cobertura do Parque Guinle para não ser preso.
Lucia e Octavio foram, também, na prática, os pais de Antônio Gabriel de Paula Fonseca, neto do primeiro casamento de Octavio. Muito mais que avó postiça, Lucia Miguel Pereira foi a verdadeira e devotada mãe de Gabriel, que soube cultuar sua memória pela vida afora. Na Fazenda Monte Alegre, em que vive e trabalha há muitos anos, no município fluminense de Paty do Alferes, ele criou um parque de esculturas que batizou com o nome de Lucia Miguel Pereira. 
A paixão e o amor por Octavio, intensamente correspondidos, coincidiram, na vida de Lucia, naqueles primeiros anos da década de 1930, com uma verdadeira explosão cultural. Assim é que, após período de um lustro dedicado a incansável pesquisa de fontes, saiu, em setembro de 1936, pela Companhia Editora Nacional, Machado de Assis (Estudo Crítico e Biográfico). Sua autora tinha, então, precoces, juveníssimos e incompletos trinta e cinco anos de idade e se tornava, com o livro pioneiro, uma legítima estrela da constelação das letras nacionais.
Lucia é, também, autora de quatro primorosos livros de literatura infantil (A FADA – MENINA, A FLORESTA MÁGICA, MARIA E SEUS BONECOS e A FILHA DO RIO VERDE), de uma inigualável biografia de Gonçalves Dias e de um longo  e definitivo ensaio intitulado PROSA DE FICÇÃO (de 1870 a 1920), que integrou, como volume XII, a História da Literatura Brasileira, dirigida por Álvaro Lins.
 Filha exemplar, companheira perfeita, mãe e avó incomparável, amiga atenta e presente, intelectual e escritora como poucas o Brasil conheceu, a vida de Lucia Miguel Pereira, encerrada tragicamente, ao lado de seu amado, em 22 de dezembro de 1959, encontrou sua melhor definição na síntese irretocável que sobre ela produziu seu primo e discípulo Antonio Candido de Mello e Souza: “Lucia foi um ser de exceção.”

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

BRAVURA INDÔMITA

                                                                                              

Carlos Tavares
Carlos Tavares é escritor e jornalista do Correio Braziliense.


                A nova versão de Bravura indômita, assinada pelos irmãos Cohen, reafirma o talento e a competência dos autores dos premiados Fargo e Onde os fracos não têm vez. Joel (1954) e Ethan (1957) já disseram em diversas entrevistas que privilegiaram o livro de Charles Portis, recém-reeditado pela Alfaguara, na esteira do filme que disputa 10 Oscars; e que só assistiram à adaptação de Henry Hathaway, de 1969, com John Wayne, no papel do agente Cogburn, uma vez, quando eram adolescentes.
          Realmente, quem conhece o clássico e vê o “remake”, desta vez com Jeff Bridges na pele de Cogburn, vai perceber nítidas alterações de adaptação, de ponto de vista, de foco narrativo, de enredo, e notará, também, que os Cohen procuraram ao máximo se distanciar da obra de Hathaway. E conseguiram. Os filmes - embora paridos de uma mesma célula-máter - são bem diferentes, a ponto de ser difícil (ou de não ser necessário) fazer comparações.
          São obras recriadas por profissionais de alto nível, é o que interessa. Feitas em dois tempos separados por mudanças drásticas na sétima arte - e no mundo -, fazem prevalecer a certeza de que não existe nada de novo sob o sol, como diz o Eclesiastes; mas que vale a pena tentar. Basta assistir os dois filmes para conferir.
           Quem não se lembra, Henry Hathaway (1898-1985) é o mesmo que dirigiu os clássicos Nevada Smith (1966), com Steven McQueen e Karl Maden, O beijo da morte (1947), com Victor Mature e Richard Widmark e Lanceiros da Índia (1935), com Gary Cooper, que concorreu a sete Oscars, em 1936, levando apenas o de melhor assistente de direção, para Paul Wing e Clem Beauchamp.