terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

LUCIA MIGUEL PEREIRA POR SEU SOBRINHO

Fábio de Sousa Coutinho
O escritor, advogado e bibliófilo Fábio S. Coutinho pesquisa a vida e a obra de uma das escritoras e críticas mais conceituadas da literatura brasileira.

Miguel Pereira, o grande médico brasileiro das duas primeiras décadas do século passado, teve uma vasta prole. Lucia Vera, ou apenas Lucia, como ela mesma se encarregou de simplificar, foi a segunda de seus seis filhos, precedida apenas pela irmã Helena. Nascida em 12 de dezembro de 1901, era mineira por acaso. Sua mãe, para fugir do calor do verão do Rio de Janeiro, passava uma temporada em Barbacena, quando deu à luz, sem tempo de voltar ao Rio para fazê-lo, como era seu desejo.
“Carioca de Minas”, Lucia Miguel Pereira nasceu no mesmo 1901 em que vieram ao mundo o romancista paraibano José Lins do Rego, os mineiros João Alphonsus (contista), Abgar Renault e Murilo Mendes (poetas), o escritor paulista Antônio de Alcântara Machado e a maior voz feminina da poesia de língua portuguesa, a carioca Cecília Meirelles. Se se tratasse de vinhos, poder-se-ia dizer que 1901 foi o ano de uma bela safra. Como se cuida de criaturas humanas, é lícito afirmar que, ao lado de Zé Lins, João Alphonsus, Abgar Renault, Murilo Mendes, Alcântara Machado e Cecília, Lúcia compõe uma verdadeira geração, das melhores e mais vigorosas de que se tem notícia na Literatura Brasileira.
O primeiro trabalho literário de Lucia Miguel Pereira foi publicado numa revista que as antigas alunas do Colégio Sion fundaram no Rio de Janeiro, chamada ELO. Lúcia tinha vinte e cinco anos e começou a escrever sobretudo artigos em que procura transmitir impressões de leitura. O ensaio sobre Euclides da Cunha, sob o título de UM BANDEIRANTE, foi publicado no número 3 da ELO, em setembro de 1927. Antes, saíra outro, sobre ISABEL, A REDENTORA. Datam, porém, da fundação do BOLETIM DE ARIEL, a excelente revista literária dirigida, em sua fase inaugural, a partir de 1931, por Gastão Cruls e Agrippino Grieco, os primeiros artigos de Lúcia para uma publicação especializada. 

(Lucia, Dinah, Adalgisa e Rachel de Queiroz)

A estreia de Lucia como romancista, com MARIA LUISA e EM SURDINA, ambos de 1933, e a consolidação de sua atuação como crítica literária nas páginas do Boletim de Ariel deram a ela um prestígio e uma visibilidade que marcaram seu ingresso na etapa balzaquiana da vida. O ano de 1934 assinala a inauguração de uma loja Art Déco na Rua do Ouvidor, 110, em pleno coração do Rio de Janeiro: a recém criada Livraria José Olympio Editora. Nessa livraria, que Lúcia passou a freqüentar desde a instalação, ela encontrou outras duas mulheres talentosas e à frente de seu tempo: a linda viúva Adalgisa Nery e a jovem Dinah Silveira de Queiroz. Alguns anos mais tarde, em 1939, juntou-se a elas uma escritora cearense de trinta anos incompletos, Rachel de Queiroz, já consagrada pelo romance regionalista O QUINZE, publicado em 1930, no mesmo ano em que Rachel completou vinte anos de idade.
Lucia Miguel Pereira era uma morena atraente e a encarnação da intelectual sofisticada. Despertou, logo, a atenção de Octavio Tarquínio de Sousa, historiador e Ministro (depois, Presidente) do TCU. Octavio era um dos melhores amigos de José Olympio e um dos seus mais importantes colaboradores. A apresentação da solteira Lucia ao quarentão desquitado Octavio coube a Augusto Frederico Schmidt, outro freqüentador  do 110 da Rua do Ouvidor  e amigo dos dois escritores.
Quem pode desvendar os mistérios do coração? O fato é que o namoro de duas pessoas tão sensíveis e cultas logo se tornou união permanente, indo o casal viver numa casa no n° 160 da Rua Inglez de Souza, no alto do tranquilo bairro carioca do Jardim Botânico. Ali ficaram até 1948, quando se mudaram para uma bela cobertura no recém-inaugurado e moderníssimo conjunto do Parque Guinle, projetado por Lúcio Costa.
O casal gostava de receber e transformou suas residências do Jardim Botânico e de Laranjeiras em democráticos pontos de encontro da intelectualidade da então capital da República. Entre os frequentadores estavam desde expoentes do pensamento católico, como Alceu Amoroso Lima, até o comunista Astrojildo Pereira, que colaborava na REVISTA DO BRASIL, dirigida por Octavio, e que em diversas ocasiões refugiou-se na cobertura do Parque Guinle para não ser preso.
Lucia e Octavio foram, também, na prática, os pais de Antônio Gabriel de Paula Fonseca, neto do primeiro casamento de Octavio. Muito mais que avó postiça, Lucia Miguel Pereira foi a verdadeira e devotada mãe de Gabriel, que soube cultuar sua memória pela vida afora. Na Fazenda Monte Alegre, em que vive e trabalha há muitos anos, no município fluminense de Paty do Alferes, ele criou um parque de esculturas que batizou com o nome de Lucia Miguel Pereira. 
A paixão e o amor por Octavio, intensamente correspondidos, coincidiram, na vida de Lucia, naqueles primeiros anos da década de 1930, com uma verdadeira explosão cultural. Assim é que, após período de um lustro dedicado a incansável pesquisa de fontes, saiu, em setembro de 1936, pela Companhia Editora Nacional, Machado de Assis (Estudo Crítico e Biográfico). Sua autora tinha, então, precoces, juveníssimos e incompletos trinta e cinco anos de idade e se tornava, com o livro pioneiro, uma legítima estrela da constelação das letras nacionais.
Lucia é, também, autora de quatro primorosos livros de literatura infantil (A FADA – MENINA, A FLORESTA MÁGICA, MARIA E SEUS BONECOS e A FILHA DO RIO VERDE), de uma inigualável biografia de Gonçalves Dias e de um longo  e definitivo ensaio intitulado PROSA DE FICÇÃO (de 1870 a 1920), que integrou, como volume XII, a História da Literatura Brasileira, dirigida por Álvaro Lins.
 Filha exemplar, companheira perfeita, mãe e avó incomparável, amiga atenta e presente, intelectual e escritora como poucas o Brasil conheceu, a vida de Lucia Miguel Pereira, encerrada tragicamente, ao lado de seu amado, em 22 de dezembro de 1959, encontrou sua melhor definição na síntese irretocável que sobre ela produziu seu primo e discípulo Antonio Candido de Mello e Souza: “Lucia foi um ser de exceção.”

Um comentário:

  1. Em um texto elegante e substancioso, Fábio Coutinho resgata a vida e a obra de Lúcia Miguel Pereira, nome que faz ainda maior uma das mais brilhantes gerações da nossa literatura, como bem observa o autor.

    Advogado, escritor e bibliófilo, Fábio Coutinho une o gosto pela pesquisa ao talento para escrever com elegância, correção e leveza. Parabéns ao blog pelo colaborador ilustre!

    Abraço amigo do leitor

    Edmílson Caminha

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