‘Livro
de Linhagem’ ou a busca da infância perdida
Adelto
Gonçalves (*)
I
O
diplomata Alberto da Costa e Silva, nascido na cidade de São Paulo em 1931, um
dos mais importantes intelectuais brasileiros contemporâneos e historiador especialista
na cultura e na história da África, membro da Academia Brasileira de Letras e
seu presidente de 2002 a
2003, sempre foi, sobretudo, um poeta extremamente lírico, como poucos na
história da Literatura Brasileira. E de
um lirismo que sempre esteve umbilicalmente ligado à infância que viveu e que,
provavelmente, gostaria que tivesse sido outra, como ele próprio admitiu em
entrevista a Harold Alvarado Tenório publicada no jornal La Prensa ,
de Bogotá, em janeiro de 1994, à época em que mal havia cumprido sua missão
como embaixador do Brasil na Colômbia: "Yo
creo que esta tentativa permanente que hago para rehacer el tiempo de mi niñez
está ligada a un profundo deseo de haberla vivido de otra manera".
Eis
um exemplo desse lirismo que vem de longe, mais especificamente de Livro de Linhagem, conjunto de poemas
escritos entre 1963 e 1965, que só saiu à luz no Brasil em 2010 pela Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo, mas que foi publicado em Portugal e distribuído
aos amigos como uma lembrança do Natal de 1966:
Rente à terra, o meu céu,
qual rês ajoelhada,
menino a vigiar, de
bruços, a arapuca
e as aves que alçam
vôo das crinas dos cavalos,
mão que toca outra
mão,
ou muro esfarinhado
que desce com o
calangro e onde o sol
faz abrir a plumagem.
(Fui menino
demais e sofri como os outros,
os que levam, descalços,
seus burricos com água,
pouca esperança,
farinha, rapadura e a tarde,
com tudo o que
volta
– os bezerros,
os focinhos
molhados dos bois
E os lacrimosos
carneiros.)
II
Os trechos acima compõem o poema “Um sobrado, em Viçosa” que evoca parte
da infância do poeta vivida no município de Viçosa, no Ceará, na divisa com o
Piauí, terra inicialmente habitada por índios tabajaras. Viçosa, antiga aldeia
de índios dirigida por padres da Companhia de Jesus, foi desbravada ao findar o
século XVI, quando do contato dos índios com os franceses, vindos do Maranhão
entre 1590 e 1604, data em que foram expulsos por Pero Coelho de Sousa, quando
este fazia tentativas de colonização portuguesa no Ceará. Os demais poemas do
livro evocam Amarante, no Piauí, cidade onde nasceu o pai de Alberto, o também
poeta (Antônio Francisco) Da Costa e Silva (1885-1950), e Sobral, cidade do
Ceará. O livro é concluído por “Sonetos rurais”, que igualmente evocam
paisagens e cheiros que o poeta viu e viveu quando menino, em andanças com a
família pelo Nordeste.
Como escreveu o também poeta e diplomata Izacyl Guimarães Ferreira, em brilhante
e denso ensaio que está na revista digital Agulha,
Livro de linhagem é um corajoso corte
entre a direta clareza dos poemas dos 20 anos e a claridade madura dos poemas
seguintes. “Chega a ser obscuro aqui e ali, por cifrado o recordar de
antepassados, quase uma narrativa de acontecimentos apenas esboçados, uma
evocação de estranha e incomum beleza", diz.
Conta Ferreira, que Da Costa e Silva, pai, sofreu de depressão profunda, aí
por volta da década de 1940, refugiando-se num silêncio profundo, o que levou o
seu filho Alberto assumir-se como responsável por seus cuidados até os seus
últimos dias. Diante do silêncio paterno, Alberto sentiu-se como um órfão antes
de sê-lo. “É desta relação que nasce a matéria poética de Alberto da Costa e
Silva”, diz Ferreira.
III
De fato, a partir de Livro de Linhagem, a obra poética de
Costa e Silva assume-se como proustiana, baseada em sua experiência pessoal de
vida, em busca do tempo perdido, mais especificamente da infância perdida. Poemas reunidos (Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 2000), prêmio Jabuti, por exemplo, está estruturado justamente em
faixas etárias: poemas dos vinte, dos trinta, dos quarenta, dos cinquenta e
sessenta anos. Segundo o poeta Fabrício Carpinejar, a espacialização da
antologia demonstra a circularidade do tempo, a linha de convivência simultânea
e harmoniosa (ainda que difícil e dolorida) do menino-pai-avô. “Eles conversam
ao mesmo tempo em todos os quadrantes, em diferentes perspectivas”, observa.
Em Livro de Linhagem, no poema “Paisagem de Amarante”, que abre o
livro, sente-se o horizonte nordestino, em meio ao ambiente agreste que ainda
resiste com um instante de verdor à inclemência de um tempo árido. E não só,
porque emoldurado por uma figura de mulher:
E fomos para onde a relva era ainda de um verde
acastanhado e havia babaçus e um regato
magro como os bois que levávamos,
onde
o florido algodão depois plantámos.
Ela vinha
e não usava bandós, nem tranças de sereia
dessas gravuras de mau talho,
que recebemos de longe,
de Lisboa talvez. Também não tinha
a blusa de unicórnios e de heráldicas feras,
nem rosas e corações no vermelho do linho.
Trazia um pássaro inventado
no lábio inferior.
Sem saias e anáguas,
pintada de vermelho e jenipapo
andava como a nhambuzinha,
apressada e sensível (....).
Por tudo isso, este é um livro, ainda que breve, indispensável na bagagem
de todo cultivador de poesia de boa qualidade.
IV
Alberto da Costa e Silva estreou em 1953 com O parque e outros poemas. Publicou depois sete livros de poesia. Publicou
dois volumes de memórias, Espelho do Príncipe
(1994) e Invenção do desenho (2007)
e, como ensaísta, O pardal na janela
(2002) e Das mãos do oleiro (2005),
que traz a apresentação que fez para Gonzaga,
um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), deste
articulista..
Publicou oito livros sobre a História da África, entre os quais se
destacam A África antes dos portugueses
(1992), A enxada e a lança (1992), A manilha e o libambo: a África e a
escravidão de 1500 a
1700 (2002), Um rio chamado Atlântico
(2003) e Francisco Félix de Souza,
mercador de escravos (2004). Escreveu Castro
Alves, um poeta sempre jovem (2006), para a coleção Perfis Brasileiros, da
Companhia das Letras. Também é autor de livros infantojuvenis, como Um passeio pela África (2006) e A África explicada aos meus filhos (2008).
Em 2009, publicou O quadrado amarelo (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo), que
reúne textos sobre arte e literatura, cruzando referências populares e eruditas,
recorrendo à memória e às experiências de viagem.
Entre os prêmios e distinções que recebeu estão os títulos de doutor honoris causa pela Universidade Obafemi
Awolowo (ex-Universidade de Ifé, Nigéria, 1986), pela Universidade Federal
Fluminense (2009) e pela Universidade Federal da Bahia, em 2013, além do prêmio
Juca Pato de Intelectual do Ano (2003), da União Brasileira de Escritores e do
Prêmio Camões de 2014. Ao lado de Lilia Moritz Schwarcz, desde 2008 dirige a
coleção das obras completas de Jorge Amado para a Companhia das Letras.
Membro do
Júri do Prêmio Camões em 2001, 2003 e 2013, é sócio-correspondente da Academia
das Ciências de Lisboa e sócio-correspondente da Academia Portuguesa da
História e da Real Academia de História, da Espanha. Diplomata de carreira, foi
professor do curso de Aperfeiçoamento de Diplomatas do Instituto Rio Branco em
1971-1972, presidente da banca examinadora do curso de Altos Estudos do
Instituto Rio Branco, de 1983
a 1985, e vice-presidente de 1995 a 2000.
Foi cônsul em
Caracas (1964-1967), embaixador em Lagos, na Nigéria (1979-83), e
cumulativamente em Cotonu, na República do Benim (1981-83), chefe do
Departamento Cultural do Ministério das Relações Exteriores (1983-84),
subsecretário-geral de administração do Ministério das Relações Exteriores
(1984-86), embaixador em Lisboa (1986-90), em Bogotá (1990-93) e em Assunção
(1993-95); entre outros cargos diplomáticos.
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Livro de Linhagem, de
Alberto da Costa e Silva. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,
56 págs., 2010, R$ 15,00. Site: www.imprensaoficial.com.br
E-mail:
livros@imprensaoficial.com.br
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(*) Adelto
Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da
madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona
brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002), Bocage – o perfil perdido
(Lisboa, Caminho, 2003) e Tomás Antônio
Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2012), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br