A delícia de ler Londres
O livro Retratos Londrinos ( Ed. Record, 306 páginas, R$ 35,00 ), de Charles Dickens, é fruto da experiência do jovem Dickens como jornalista. São 32 relatos, cujo tema é Londres. Mas a cidade ultrapassa sua condição de cenário. Ela pulsa, regurgita, polemiza, entristece, ri, revolta-se, chora, canta, esperneia, bufa, cansa-se, espraia-se e desdenha. As cidades vivem por intermédio de sua gente. A Londres de Dickens está dentro das pessoas tanto quanto as pessoas estão em Londres.
Nunca antes traduzido no Brasil, Retratos londrinos ( Sketches by Boz em inglês; o Boz do título é como Dickens assinava suas crônicas ) cria a contemporaneidade das obras feitas com a pena da qualidade. Não importa se essa Londres não existe mais. Importa a maneira singular de um autor vê-la, antes como “repórter” ficcional para depois se tornar um ficcionista repórter de seu tempo.
Neste livro de estréia de Dickens, o que chama atenção é a visão romanesca do autor. O romance é a arte da palavra que mais se aproxima da amplitude épica ( Lukács ). O escritor inglês aqui quis dar uma amplíssima visão da sociedade londrina. Uma visão majestosa, superior, de um semi-deus narrativo, cujos olhos tudo alcança e cuja percepção tudo comenta.
Uma leitura deliciosa, porque os relatos são fragmentos de um romance nunca escrito. São experimentações de um jovem narrador que se prepara para a empreitada de narrar o romance que viria com David Copperfield e Oliver Twist. É antes o narrador treinando a voz romanesca que a voz de um cronista medíocre. Por isso o livro encanta como um romance – o romance de Londres. Sem personagem principal e sem trama, mas recheado por personagens secundários, cenas cotidianas, observações da alma londrina.
Dickens discorre sobre viagens de carruagem, “ônibus” puxado a cavalo, a disputa oratória entre clérigos ou entre mocinhas que promovem obras beneficentes. O autor não quer pegar apenas os tipos londrinos, mas quer entender a alma da cidade: o lado ritualístico e caricatural do Parlamento, a classe média, os confrontos sociais, o amanhecer e o anoitecer da cidade, logradouros, pontes, lugares que se transformam, uma Londres que não existe mais. Aqui e ali, o jovem Dickens deixa escapar, ao lado de uma ironia feroz e um delicioso humor, a tristeza dos brechós. É reincidente, três ou quatro retratos tratam de casa de penhores ou de sebos. É o passado que insiste em permanecer no presente.
No universo dos sebos está o magistral texto “Reflexões em Monmouth Street”, onde as roupas, sapatos e outros artigos de vestuário são preenchidos por gente e tomam vida. É de um colorido tão moderno, animação vibrátil e forte concepção visual que nos leva a crer que, invertendo a equação, o cinema, embora arte dramática, deve sobejamente à literatura.
Sempre advoguei que a cidade merece ser tratada na ficção como um personagem, ou seja, é um elemento estético dentro da narrativa. Logo, segue as regras da verossimilhança que ocorre dentro das estruturas da obra e não em correspondência com a realidade exterior. Aqui gostaria de diferenciar o que parece ser uno: verossimilhança e verossimilitude. O que ocorre aqui em Retratos londrinos, de Dickens, é a “verossimilitude”, ou seja, um manejo não-ficcional da narrativa. São a crônica, o ensaio, a prosa jornalística. A verossimilhança tem o papel de criar o efeito do real. A “verossimilitude”, para mim, afasta-se um pouco da verossimilhança e passa a ser, numa linguagem não romanesca, mas científica, uma apreensão “verdadeira” do real. Mas esta apreensão do “real”, mesmo que não seja ficcionalizável, também implica uma transcodificação da realidade, já que passamos do código do empírico para o código da palavra.
Enfim, estamos diante de uma obra fascinante, que se pode ler modernamente como um romance fragmentado, um grande painel ou jogo de espelhos urbanos. No prefácio à primeira edição da obra, Dickens compara seu livro a um aeronauta que empreende seu primeiro vôo de balão. Fique seguro o leitor que, embora o veículo seja um misto de aventura e perigo, nada há a temer aqui, a não ser a altura vertiginosa da prosa do próprio Dickens.
imagem retirada da internet:
O livro Retratos Londrinos ( Ed. Record, 306 páginas, R$ 35,00 ), de Charles Dickens, é fruto da experiência do jovem Dickens como jornalista. São 32 relatos, cujo tema é Londres. Mas a cidade ultrapassa sua condição de cenário. Ela pulsa, regurgita, polemiza, entristece, ri, revolta-se, chora, canta, esperneia, bufa, cansa-se, espraia-se e desdenha. As cidades vivem por intermédio de sua gente. A Londres de Dickens está dentro das pessoas tanto quanto as pessoas estão em Londres.
Nunca antes traduzido no Brasil, Retratos londrinos ( Sketches by Boz em inglês; o Boz do título é como Dickens assinava suas crônicas ) cria a contemporaneidade das obras feitas com a pena da qualidade. Não importa se essa Londres não existe mais. Importa a maneira singular de um autor vê-la, antes como “repórter” ficcional para depois se tornar um ficcionista repórter de seu tempo.
Neste livro de estréia de Dickens, o que chama atenção é a visão romanesca do autor. O romance é a arte da palavra que mais se aproxima da amplitude épica ( Lukács ). O escritor inglês aqui quis dar uma amplíssima visão da sociedade londrina. Uma visão majestosa, superior, de um semi-deus narrativo, cujos olhos tudo alcança e cuja percepção tudo comenta.
Uma leitura deliciosa, porque os relatos são fragmentos de um romance nunca escrito. São experimentações de um jovem narrador que se prepara para a empreitada de narrar o romance que viria com David Copperfield e Oliver Twist. É antes o narrador treinando a voz romanesca que a voz de um cronista medíocre. Por isso o livro encanta como um romance – o romance de Londres. Sem personagem principal e sem trama, mas recheado por personagens secundários, cenas cotidianas, observações da alma londrina.
Dickens discorre sobre viagens de carruagem, “ônibus” puxado a cavalo, a disputa oratória entre clérigos ou entre mocinhas que promovem obras beneficentes. O autor não quer pegar apenas os tipos londrinos, mas quer entender a alma da cidade: o lado ritualístico e caricatural do Parlamento, a classe média, os confrontos sociais, o amanhecer e o anoitecer da cidade, logradouros, pontes, lugares que se transformam, uma Londres que não existe mais. Aqui e ali, o jovem Dickens deixa escapar, ao lado de uma ironia feroz e um delicioso humor, a tristeza dos brechós. É reincidente, três ou quatro retratos tratam de casa de penhores ou de sebos. É o passado que insiste em permanecer no presente.
No universo dos sebos está o magistral texto “Reflexões em Monmouth Street”, onde as roupas, sapatos e outros artigos de vestuário são preenchidos por gente e tomam vida. É de um colorido tão moderno, animação vibrátil e forte concepção visual que nos leva a crer que, invertendo a equação, o cinema, embora arte dramática, deve sobejamente à literatura.
Sempre advoguei que a cidade merece ser tratada na ficção como um personagem, ou seja, é um elemento estético dentro da narrativa. Logo, segue as regras da verossimilhança que ocorre dentro das estruturas da obra e não em correspondência com a realidade exterior. Aqui gostaria de diferenciar o que parece ser uno: verossimilhança e verossimilitude. O que ocorre aqui em Retratos londrinos, de Dickens, é a “verossimilitude”, ou seja, um manejo não-ficcional da narrativa. São a crônica, o ensaio, a prosa jornalística. A verossimilhança tem o papel de criar o efeito do real. A “verossimilitude”, para mim, afasta-se um pouco da verossimilhança e passa a ser, numa linguagem não romanesca, mas científica, uma apreensão “verdadeira” do real. Mas esta apreensão do “real”, mesmo que não seja ficcionalizável, também implica uma transcodificação da realidade, já que passamos do código do empírico para o código da palavra.
Enfim, estamos diante de uma obra fascinante, que se pode ler modernamente como um romance fragmentado, um grande painel ou jogo de espelhos urbanos. No prefácio à primeira edição da obra, Dickens compara seu livro a um aeronauta que empreende seu primeiro vôo de balão. Fique seguro o leitor que, embora o veículo seja um misto de aventura e perigo, nada há a temer aqui, a não ser a altura vertiginosa da prosa do próprio Dickens.
imagem retirada da internet:
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