domingo, 6 de outubro de 2024

O instigante mosaico de "Vale das ameixas", de Hugo Almeida

 











Conheço a produção literária de Hugo Almeida desde seus primeiros livros de contos nos anos 1970/80 até o agora romance Vale das Ameixas (Editora Sinete, São Paulo, 2024). Durante a trajetória de 15 livros Hugo tem sido fiel a si mesmo. Jornalista, primeiro em Belo Horizonte, mais tarde e definitivamente em São Paulo, doutor em literatura brasileira pela USP, ele sempre perseguiu a experimentação, tendo por influência ou confluência a presença estética de Osman Lins (1924-1978). Vale citar seus escritos, conferências e organização de livros sobre o escritor pernambucano porque o mestre de Avalovara está presente neste romance sobre o qual agora escrevo, principalmente na intertextualidade de A rainha dos cárceres da Grécia com o labirinto previdenciário e sua personagem Julia Enone.

Em 1988, Hugo Almeida ganhou o importante e prestigiado prêmio da Bienal Nestlé com o romance Mil corações solitários. Agora retorna ao gênero com um romance vigoroso. Vale das ameixas é composto em forma de mosaicos e várias vozes. O personagem central é Harley ou Timo, um polonês exilado no Brasil, que ganhou a vida como professor. Aposentado e envelhecido, o personagem revisita seus amores, encontros e desencontros, a vida dele amorosa com as mulheres de sua vida (Núbia, Léa, Biela, Laura..) e a vida das mulheres, cada qual com seus destinos sem a presença dele, desde uma atriz, uma guerrilheira política, uma bailarina e várias outras.

Como o livro é um composto de recortes, o leitor terá de montar a linearidade que o romance não expõe à leitura. Com muitas menções a figuras artísticas polonesas como Chopin, Grotowski, Wajda, Krajcberg, Polanski, Gombrowicz, Ziembinski, o romance cresce em densidade com essas lembranças e historietas de grandes escritores, músicos, cineastas, artistas plásticos etc. que povoam o livro.



Neste tipo de narrativa errática (não há aqui neste adjetivo nenhuma conotação negativa, pelo contrário), fragmentária, o mais comum – como aqui ocorre – é não haver uma linearidade que conduza a uma tensão do tipo apresentação, problema, clímax, anticlímax. São essas partes do mosaico que vão compondo o painel final da vida de Timo, suas mulheres, seus filhos (um ou dois?), suas dores, seus amores, suas alegrias. O interesse é a composição da grande tapeçaria literária e não um suspense ou uma história com princípio, meio e fim. Neste sentido, como no Jogo da Amarelinha, de Cortázar, o romance de Hugo Almeida pode ser lido de trás para frente, de frente para trás, ou começar de qualquer fragmento. Este é um dos virtuosismos de Hugo Almeida em seu Vale das ameixas.

O personagem principal é um sujeito solitário, vivendo de recordações de amores fugidios de outras épocas, algumas foram suas alunas e ele exerceu sua influência intelectual. É um exilado do nazismo, com lembranças da sua Polônia natal. Não é um primor de virtude, embora quase todas as mulheres de sua vida o tenham em boa conta (a psicóloga Amanda é exceção). Não poderia deixar de citar, porque a mim me toca muito particularmente, a personagem d. Benedita, que apareceu primeiramente num romance meu, O viúvo, e que Hugo a fez morar com o polonês, dando conta ao leitor que eu ao ir para a Venezuela a deixara com Harley. É uma personagem pela qual tenho muito carinho e Hugo a reconstrói de maneira admirável, dando outros toques que a tornaram mais humana. Aí está, além da beleza da amizade que nos une há quase cinquenta anos, a experiência da intertextualidade como muito bem aponta o autor.

Nessa colagem densa, nesse bricabraque narrativo, Hugo Almeida constrói com seu Vale das ameixas, depois de uma larga e profícua trajetória, um dos romances mais instigantes dos nossos dias. É o ápice de uma carreira construída com zelo, afinco e perseverança.







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