O
pensamento é longo. O diabo do pensamento não tem paredes. Quanto mede a
obsessão? Ele era composto por músculos, humores, líquidos e obsessões. A
obsessão dele era a sobra. O mundo não podia ser restante. Deveria ser exato
como soma.
O que ele não sabia era se a morte
podia ser considerada desperdício. É certo que, durante a vida, desperdiça-se
muito. E que este desperdício cessa com a morte. Mas a questão não era para ser
posta desta maneira. E, sim, se, depois da morte, o corpo era mais desperdício
do que em vida. Ou seja, em outras palavras, não interessa se o morto não
desperdiça, mas ele queria saber se entre o corpo morto e o corpo vivo, qual
deles se desperdiça mais?
Depois,
obviamente, de vigiar os desperdícios ordinários como água, papel, luz,
chamadas telefônicas – não só seus desperdícios, mas o desperdício alheio, na
maioria das vezes, gerando discussões, caras fechadas, vizinhos que cortaram
relações, a família que o marginalizara, uns chamando-o de excêntrico, outros
de inconveniente – o certo é que chegou a uma conclusão impeditiva: o
pensamento também desperdiçava. Era preciso eliminar o pensamento mecânico,
cotidiano, ordinário, desnecessário e, certamente, perdulário.
O pensamento perdulário era o
lugar-comum, as ruminações automáticas, o raciocínio viciado. Para evitá-los
havia de fazer um esforço sobre-humano e, mais ainda, treinar a mente. O
pensamento que não se desperdiça, logo, deveria ser o contrário. O que
trouxesse novidade, luz, idéia transformadora ou mesmo disparatada, deveria ser
visto como pensamento inquieto e ousado. Ou melhor, um pensamento não
perdulário, um pensamento econômico.
Ele,
afora a discussão interna sobre quem desperdiçava mais, se o corpo vivo ou o
corpo morto, decidiu vigiar também o desperdício da vida. O difícil era
delimitar o que era vida excessiva. Não lhe interessava considerações e coros
alheios. Ele se perguntava o que podia cortar em sua vida para que não
desperdiçasse.
Deitar-se, alimentar-se pouco, somente
pensar o necessário e útil, imprescindível, o pensamento raro, não, não era a
saída. A cama poderia também ser vista como desperdício horizontal. Poderia
aprisionar-se. Mas o corpo necessitava de energia, músculo, excrescência – os
corpos, visivelmente exteriores, são feitos de excrescências, vejam os membros,
há excrescência mais significativa e simbólica do que os membros?
O trabalho era desperdício, ora se não,
já o havia abandonado fazia tempo. O trabalho é um mecanismo de relógio,
músculo de horário, roldanas feitas de veia e sangue, o sujeito desperdiça a
vida atrás de uma mesa. Não conseguia pensar no trabalho sem que a imagem de
uma mesa devorando-o, infectando-o de cupim e papel, tornando sua pele seca,
sugando-lhe a seiva mínima da dignidade, o invadisse de forma inquietante. O
trabalho rotineiro era invenção não do diabo, mas de um Deus patrão.
(Manual de Tortura. Contos, 2007)
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