Em todo livro há
uma longa peregrinação, que pode ser física, mental, metafísica, social,
mundana ou psicológica. Os romances de formação geralmente levam os personagens
(lembro Os anos de aprendizado de Wilhelm
Meister, de Goethe) para uma via-crúcis de lugares e experiências a fim de
formar a personalidade adulta do protagonista que fornece nome ao livro. Em O ateneu, de Raul Pompéia, a experiência
se dá intramuros e, embora o espaço romancesco esteja sitiado, a amplitude de
ações e experiências empurra o personagem para uma transformação, de euforia à
desilusão, da vida como infante ao desencanto da juventude madura.
Em Borges, essa
peregrinação corresponde à busca do conhecimento. Uma das fascinações do
escritor argentino, em Ficções, mostra
o autor rendido às tramas do policial. Rudemente apresentado, o romance
policial – de Simenon e Agatha Christie – busca revelar as motivações e modus operandi de um crime investigado. Diferentemente
do romance noir americano, mais
violento, o romance de Simenon, entre outros, é de cunho mental e fruto mais da
elaboração que lembra a resolução de um quebra-cabeça. Borges utiliza muitas
vezes o crime, físico. Há homicídios e mortes, espionagem e traição, espiões,
heróis e pusilânimes, mas rigorosamente Borges coloca toda a trama e o
personagem para perseguir um enigma e uma combinação de fatores intelectuais e
livrescos, em que menos importa um cadáver que uma longa descrição do método
erudito de desvendar um mistério por intermédio da hermenêutica de um livro
(entre outros, “El jardín de senderos que se bifurcan”).
O labirinto de
Borges também é um labirinto linguístico. Não há jogo de palavras, mas um jogo
em que faltam letras em livros a serem decifrados. O leitor está diante de uma
construção hiperbólica em que o texto é construído e desconstruído diante dos
seus olhos, levando-o a acompanhar o raciocínio do narrador em sua viagem cognoscitiva.
“El libro circular es Dios”, escreve Borges em “La loteria en Babilonia”. Nessa busca pelo conhecimento, o
leitor acaba envolvido num emaranhado de citações eruditas e de recorrências a
textos duvidosos, outros de autoria reconhecida, mas ambos desembocam no mais
volumoso torvelinho que nos confunde e nos carrega até um nível de uma
compreensão da fragilidade humana ou “as complexidades del mal y del infortunio”,
no dizer do narrador de “Tres versiones de Judas”.
Livros,
labirintos, jogo de espelhos, erudição, certo orientalismo (o orientalismo de
Borges não é exotismo e/ou não está a serviço de uma mística espiritual como os
livros de Herman Hesse, por exemplo; em Borges de Ficções, o que existe é mais um instrumento que o autor se vale
para buscar o conhecimento que certamente será bem diferente da premissa
inicial), reescritura da Bíblia e de certos livros, judaísmo, mundos paralelos,
personagens saxões e nórdicos. Estes últimos nos remetem a certo distanciamento
de Borges em relação ao narrado. O presente é a condenação: em “El fin”, o
narrador acusa: “... a viver en el presente como los animales”. Da mesma
maneira em que data a ação transcorrida em grande parte de seus contos em
épocas remotas, distantes do presente, seja o século XIX, seja a Babilonia, seja
o início do século em que viveu, Borges busca uma suspensão temporal, quase
insinuando uma atemporalidade (ainda que situe em situações concretas como, por
exemplo, 1939, para um conto escrito em 1943, a morte por fuzilamento em que o
condenado reescreve de memória uma tradução que duraria um ano, cujo título é “El
milagro secreto”).
Outra forma de
enxergar a busca do conhecimento em Ficções
é observar como Borges maneja a erudição, o mistério, a proposição do enigma
livresco e cultural, a criação – também literária – de novos mundos escondidos
em enciclopédias, que são em última análise, a coleta de todo o possível
conhecimento. No conto “La secta del Fénix”, o narrador apresenta a seita que
cultua o Segredo (“el secreto”). Ao final, depois de apontar que os seguidores
mais novos desconfiam de que não haja nenhum segredo a ser revelado, Borges
afirma que “alguien no ha vacilado en afirmar que ya es instintivo”. Borges
então iguala o processo humano, desnudo do uso discriminatório da razão, o
conhecimento feito apenas pela via erudita e mental, com a hipótese de que se
pode chegar ao Enigma e ao Segredo por intermédio da sensibilidade e do
instinto humanos. (RCF)
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