Não há dúvida que um dos nossos autores mais cerebrais é Osman Lins. De suas obras exala erudição. Não é à toa que o autor tenha em sua bibliografia ensaios. A Rainha dos Cárceres da Grécia não foge à regra. O autor inicia o relato – um livro sobre um livro – a partir da constatação, ainda pertinente, da ausência do autor na crítica literária. “O exame dos textos, postulam hoje os especialistas, deve ignorar a mão que os redigiu”, escreve o narrador de Osman Lins. É uma luta travada ainda no campo da Hermenêutica e que opôs em certo momento Barthes ( com seu texto que dispensava a mão que o escrevia ) e Derrida, que argumentava que não poderíamos fugir do círculo do humanismo e, portanto, a expressão máxima do humanismo era a subjetividade autoral, que deve ser evitada, mas da qual não há saída. O narrador de A Rainha dos Cárceres se pergunta, espantado, atônito, revisitando o texto inédito de sua amante falecida: “Posso indagar ainda: assente que o autor não existe, teria sido eu amante de ninguém?”.
Ora, na verdade, Osman está fingindo que o narrador de A Rainha dos Cárceres é um intelectual que vai fazer uma análise literária da obra da autora. O narrador está tão comprometido com a autora que as digressões sobre o narrador ou sobre a forma de abordar o livro inédito da amante morta são apenas preâmbulo “culto” para as finalidades de caracterizar o narrador e prenunciar os comportamentos que virão a seguir. E o autor propor uma estética baseada no ensaio antes que na peripécia.
Estamos sempre no universo culto da cidade, já que o narrador primeiro, o do romance A Rainha dos Cárceres, é erudito. Maria de França é um personagem migrante não apenas no aspecto de mudança para a cidade grande, mas no conceito de que é um personagem de segundo grau: é um personagem que migra de um livro para o outro, de um livro dentro de um livro. Logo, a cidade que irá aparecer em A Rainha dos Cárceres também é uma cidade em segundo grau: uma cidade dentro de outra cidade. A cidade da migrante, duplo segundo grau, que o narrador, habitante da cidade, reproduz no seu romance.
A relação que a “louca” Maria de França, requerente junto à Previdência Social, de uma pensão, dá-se no mundo imaginário ( e secundário ) do romance da amante do narrador. A cidade burocrática, kafkiana, que ela entra em contato não é uma cidade real, ao mesmo tempo em que é uma das realidades mais cruéis da cidade: a relação do cidadão com a burocracia. A burocracia é a cidade viciada, os erros e desvios de uma cidadania colocada em dúvida. Não é a primeira vez que leio a notícia de que uma pessoa viva, considerada morta em papel, não pode exercer suas funções civis: alugar apartamento, comprar a crédito, empregar-se, etc. Isso porque o valor do papel, o valor do documento, é um estatuto muito mais valioso. A burocracia sobrepõe-se à realidade. Não é à toa que Kafka vai se apropriar, em O processo, dos meandros jurídicos, e por extensão, burocráticos, para demonstrar a “insanidade” do mundo contemporâneo.
Poderia eu dizer que a burocracia tenta reproduzir, em papel, o mundo da realidade. A realidade da cidade em forma de letra. Alguém poderia levantar que o campo também sofre a ação da burocracia. E eu concordaria. O que acontece em relação com o campo é que burocracia x não urbano tem um ritmo mais lento e envolve outras questões como posse de terra, latifúndio, que não nos cabe aqui comentar e alongar. A burocracia, na cidade, é muito mais virulenta no sentido de que está ocorrendo a todo o momento. A burocracia é um dos males da cidade e determina um dos comportamentos de inter-relação social.
A burocracia torna-se então a cidade regida por normas. Não é a cidade virtual, mas a cidade cerceadora, a cidade “cidadã”, a cidade da lei, da mesma lei que é feita para proteger, mas que, desvirtuada, passa a funcionar como a realidade em si. Neste sentido, a burocracia torna-se uma cidade cidadã virtual, ou seja, a cidade ideal. Ideal no sentido de que as normas devem ser cumpridas e, se cumpridas, a felicidade cidadã se espalhará homogeneamente entre os habitantes da grande metrópole. Mas o que acontece é justamente o contrário: a burocracia suprime direitos, enreda o cidadão num cipoal de obrigações, deveres e poucos direitos e, em vez de proporcionar felicidade, provoca a sensação de aprisionamento, sugere sufocamento, induz à crença de que o personagem não pode mais dela se livrar.
A intensa vida urbana, contudo, incomoda o narrador, aqui nomeado, talvez impropriamente, o narrador real, ou seja, o narrador de A Rainha dos Cárceres e não do texto de sua amante Julia Marquezim.
“Habituado à alameda Lorena e arredores, evito, sempre que possível, aventurar-me ao centro da cidade. Pessoas que, nos bairros, movem-se naturalmente, parecem meio cegas quando investem – decididas, mas numa espécie de pânico – pela Quinze de Novembro ou pela Sete de Abril, áreas onde clama, intensa, a vida de São Paulo – e isto me atordoa...”
É a megalópole que deforma o modo de andar e viver das pessoas, antes natural, agora às cegas. A cegueira urbana, que faz com que os pedestres estejam sempre em rumo de alguma coisa e não têm como projeto o caminhar em si, automatiza e transforma o instinto natural ou o caminhar razoável. A Recife da Tamarineira, dos bairros pobres, a cidade de Recife, cidade de segundo grau, pois está dentro de um romance que conta um romance, esta cidade é uma cidade periférica na narrativa e periférica em sua descentralidade real. Aqui, não. Pulsa a cidade intelectualizada do narrador, que pesquisa a origem de nomes tão diversos e pitorescos e chega a sua fonte erudita: Ronphile, quiromante do século XVIII, Nicolau Pompeu, vidente do século XIV e XV. Então temos a cidade do narrador e a cidade da narrada, a personagem de Maria de França. Entre a cidade cega e a cidade louca, a primeira do narrador paulista e a segunda da personagem que ouve vozes, há um abismo urbano e civilizatório. São cidades sem razão e sem visão. A falta de sanidade mental de Maria de França também é uma forma de cegueira. E a cegueira paulista e pedestre também é uma forma de loucura urbana.
A intromissão de artigos de jornal e de citações de livros, como num ensaio, cria um procedimento distinto da prática narrativa ficcional. Para nós, a inserção das notícias de jornal significa, já que delimitamos nosso campo de estudo, a representação da cidade factual, da cidade como notícia. A notícia também pode significar a permanência da aparência do real dentro de uma ficção de segundo grau. A cidade do jornal não é a cidade real, mas a cidade forjada pela visão de vários cidadãos, chamados jornalistas, e que, no imaginário das cidades, teriam o papel de reportar a verdade. O fato jornalístico passa a ser, dessa maneira, incontestável. Ora, a literatura é um fato ficcional incontestável pelo seu caráter estético e por sua verossimilhança. A notícia de jornal, inserida num texto ficcional, passa a ter caráter ficcional. Mesmo que as fontes e os personagens sejam verdadeiros como Reinhold Stephanes, presidente do Instituto Nacional de Previdência Social e o Jornal da Tarde, e sua notícia do dia 3.10.74.
O jornal, mais do que a citação de livros que pertencem à esfera do ensaio, nos interessa porque veicula a idéia de cotidianidade, de urbanidade e de caráter factual. Este último já foi observado. Restam-nos a cotidianidade e a urbanicidade. A cotidianidade forjada pela notícia de jornal cria a falsa idéia de que estamos vivenciando não uma cidade internalizada no narrador ou nos personagens – ou mesmo, como já vimos em outros artigos, uma cidade internalizada no leitor. Mas cria a falsa impressão de que compartilhamos um ato coletivo. O jornal é a metonímia da coletividade e da simultaneidade. Várias pessoas, durante o dia, lêem a mesma notícia. Ao inseri-la no campo autônomo da literatura, a notícia jornalística passa a veicular a idéia de ato coletivo. Ato coletivo, simultâneo e urbano, por fim. A cidade se homogeneiza, se cumplicia, se solidariza, se torna múltipla e una na leitura da notícia. É o que chamamos o fenômeno da urbanicidade.
A cidade dos personagens que convivem no livro de Julia Marquezim é uma cidade degradada. Além de ser uma cidade de segundo grau ( se levarmos em conta o conceito platônico de poesia em A República, logo este grau de afastamento será muito maior ), a cidade de Maria de França é uma cidade dos despossuídos. Não incorpora as vantagens e direitos do cidadão ou os avanços e benesses da sociedade de consumo. Uma das questões fundamentais do romance escrito pela amante do narrador é justamente a carência de direitos cidadãos. A busca de uma pensão, o emaranhado burocrático, a violência do meio, tudo a leva a afastar-se de uma cidade viável.
Em outro artigo, discuti a relação entre o poeta e a cidade e conclui que o poeta não entrava em contato com a cidade dita urbanística, de cimento, edificações, ruas e avenidas, a cidade permitia ao poeta entrar em contato com a civilização, com a cultura, com o saber, a cidade era o lugar privilegiado da cultura. Ora, o que eu queria lembrar era justamente – e dava como exemplo Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro – que uma pessoa pode viver numa cidade e não entrar em contato com a cultura transformadora: é o caso de Maria de França. A cidade do narrador de A Rainha dos Cárceres, ao contrário, é uma cidade culta, de direitos humanos, que favorece o saber e respeita os direitos humanos.
(trecho do artigo do livro O sopro na argila, org. Hugo Almeida, Ed. Nankin, 2004)
Nenhum comentário:
Postar um comentário