(do livro A cidade na literatura e outros ensaios. São Luís, Academia Maranhense de Letras, 2016)
Ardiloso,
escritor de inúmeros recursos, Faulkner neste romance, ao contrário dos
vanguardistas O som e a fúria e Enquanto agonizo, mostra um narrador
mais comportado, usual e tradicional. Todas as partes do romance são narradas
em 3ª pessoa. Não há monólogo interior. O monólogo interior até pode ser
realizado em 3ª pessoa. Mas não é o caso aqui. O que existe aqui é alternância
do foco narrativo.
Esse discurso
tradicional não é desprovido de sua idiossincrasia e Faulkner que aparentemente
sugere que vai contar uma história de modo tradicional, ao colocar o foco
narrativo em Lena Grove, moça grávida que vai atrás do pai do filho que irá
nascer, no Alabama do início do século XX, logo no segundo capítulo aponta para
a mudança de foco, acompanhando os vários personagens, sem, contudo, com a
ruptura e fragmentação que torna a leitura de Enquanto agonizo, por exemplo, difícil e confusa, pois o leitor
terá que identificar quem está falando entre quase dezena de personagens.
Luz em agosto mostra que Faulkner, mais
uma vez, é um grande narrador. Nem todos os escritores têm força narrativa.
Joyce mesmo não era um grande narrador. Culto, excêntrico, experimentalista, a
prosa de Joyce é intrigante pelo jogo de palavras, a intertextualidade, numa exposição
morosa e cerebral das vinte e quatro horas de Leopold Bloom. Mas Joyce é um
fraco contador de histórias. (Deixemos Joyce de lado, porque nos interessa aqui
Faulkner). Em Faulkner, influenciado por Joyce, não há, principalmente, a
palavra porte-manteau que
caracterizou, junto com o stream of
consciousness, a prosa joycena. O romance de Faulkner mais devedor de sua
admiração pelo irlandês é O som e a fúria.
Outro dado
curioso que quero comentar nessa pequena nota sobre Faulkner é o conceito de
negro. Há vários negros verdadeiros na narrativa de Faulkner. Cativa-me
sobremaneira o fugitivo negro de uma penitenciária em Palmeiras Selvagens que toma toda uma metade do livro que não tem
nenhuma ligação com a outra metade onde são narradas as desventuras de um jovem
médico e sua esposa numa afastada e derruída mina cujos patrões mantêm a todos
numa insalubridade doentia.
Em Luz em agosto, o personagem principal,
aquele em que é o eixo que faz girar todos os personagens em sua volta, é Joe Christmas,
um homem que trabalha numa madeireira, pai do filho de Lena Grove. Christimas
assassina sua amante e senhoria branca, foge, é perseguido e morto. O negro de
Faulkner é branco. É assim com Christmas, abandonado num orfanato e seguindo
pela vida solitário e anônimo, é assim com Bon, o personagem “negro” e por isso
proibido de casar com uma branca por ser incestuoso e, fundamental, por ter em
seu sangue um oitavo de sangue negro no romance Absalão, Absalão. Bon é branco, mesmo na visão do norte-americano
de hoje.
Entre alguns
personagens de Faulkner que nos causam estranheza – e o fazem um autor especial
também por esta apresentação de um personagem dissonante – está Christmas. Como
foi dito acima, Christmas é um órfão que desconhece sua origem racial e é
levado a outro reformatório em razão de que a direção suspeita que seja negro e
portanto não pode permanecer na instituição para órfãos brancos.
A psicologia de Christmas
é quase nula, embora o autor mostre o assassinato de sua amante e protetora
branca por esta apontá-lo como negro e ele próprio julgar que é um crime uma
branca promíscua envolver-se com um negro como ele. O resto do tempo, Christmas
atua como um autômato. Quase que antecipa o personagem descarnado de psicologia
do nouveau-roman francês algumas
décadas adiante. Sartre fala em um homem sem Deus, o que me soa estranho,
porque os romances de Faulkner, principalmente Absalão, Absalão e Luz em
agosto estão plenos de referências bíblicas. A maldição, o fatalismo e a
tragédia estão em cada linha desses dois romances que se irmanam. Antes que um
Joyce norte-americano, Faulkner é um Shakespeare do Mississipi.
Sobre taras e
fraquezas humanas, Monique Nathan observa que os personagens de Faulkner buscam
“se reintegrar seu passado de homem do Sul, libertando-o, primeiro, da
fatalidade de que se julga vítima”. Perfeito. E Michel Butor (um dos teóricos
do nouveau-roman) aponta: “É o
conhecimento da sua própria história, absolutamente necessário para que possam
libertar-se da fatalidade do Sul, o que Faulkner fornece a seus compatriotas.” (RCF)
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