(Trecho do livro Narrativas da vida, o personagem do romance. São Luís, Academia Maranhense de Letras, 2023. Também encontrado em e-book, na Amazon)
As
leituras sobre o personagem de Vicent Jouve, Michel Zérrafa e Philippe Hamon
Na escassa bibliografia que trata
apenas do personagem, Philippe Hamon tentou abordar o personagem dentro do
romance de Zola. Embora seu esforço para construir uma teoria do personagem
estivesse subjacente ao estudo, Hamon se apoiou somente numa expressão reduzida
do comportamento do personagem zoliano. Buscou procedimentos, comportamentos
repetitivos, isolou caracteres, analisou modelos que, infelizmente, ainda que
não diminua seu trabalho, reduziu-se à esfera romanesca do naturalismo do autor
francês. Sua intenção, como ele mesmo afirma em seu livro, não é tratar da
psicologia do personagem, uma psicologia social, ou de uma estética, campos de
atuação de Michel Zeraffa. Mas
... privilegiar um estudo que dê conta do personagem
como objetivo de uma estética romanesca, estudo que, contudo, poderá integrar,
mas sem privilegiar, o ponto de vista do autor da criação, logo, igualmente e
por esse ângulo, uma certa concepção do personagem histórica e ideologicamente
datada. Simplesmente, nós escolheremos chegar a essa determinação histórica e
ideológica assimilando a um tipo e pacto de comunicação (comunicação
realista – plausível – pedagógica) e a um estilo de época (a escritura
artista-impressionista), antes que um dado filosófico ou moral. [1]
Hamon entende, como vários outros, o
ideológico como sinônimo de ideias e, aqui, as ideias do autor e não como um
sistema de operação que é traiçoeiro até mesmo para o criador revelando
contradições sobre o que ele expressa e até mesmo escreve.
Outro que estuda apenas o personagem
é Vicent Jouve, teórico da leitura. Seu livro não se afasta tanto, ele
reconhece, do estruturalismo, mas acrescenta que sua vocação é o estudo da
recepção do personagem pelo leitor. Não deixa de incluir a psicanálise, o
cinema e outras manifestações que influem e interferem na captação da imagem do
personagem durante a leitura. O estudo da recepção não se opõe à aproximação
imanente, é complemento indispensável. Sem categorias não se pode pensar a
experiência, segundo ele.
Nosso estudo não despreza a interpretação
e o modo como o leitor é afetado pela leitura. Tampouco despreza a psicanálise.
Mas há diferenças. A psicanálise, para Jouve, tende à apreensão do leitor,
enquanto nós trabalhamos com a produção e recepção. Além de tratar a
psicanálise não apenas do ponto de vista freudiano ou da terapia convencional,
mas incluindo aí a ideologia, a sociologia e as manifestações míticas. A
angustiosa produção da fábula nos interessa tanto quanto a “leitura”
internalizada pelo leitor. O personagem é uma simbiose de projeções mentais
profundamente arraigadas na produção da mitologia pessoal e social.
Da mesma maneira não descartamos as
teorias da leitura dos hermeneutas como Jauss, Iser e Ricoeur sobre o impacto
do leitor, incluímos também aí as projeções idealistas feitas pelos leitores em
relação aos autores. Da mesma forma que vimos os efeitos das projeções do texto
sobre o leitor, também queremos enxergar um comportamento mítico e múltiplo no
promotor da emissão da leitura: o autor, como ser social e sua ontologia. Nosso
propósito seria também entender esses dois elementos, autor e leitor, como “personagens”,
um ao produzir o texto ficcional e outro a cumprir uma tarefa que sem ela não
existe a literatura.
O livro de Jouve, pelo próprio
título, já explicita sua concepção e sua intenção de estudo: o efeito que o
personagem provoca no leitor. É o livro mais completo sobre o personagem a que
tive acesso, aí incluindo o estudo sobre o personagem levado a cabo por Michel
Zéraffa. Embora mais didático, mais “estruturalista”, mais comprometido com a
leitura, o livro de Jouve é provocativo e aponta para várias questões
inquietantes relativas ao nosso tema.
Já havia escrito três quartos do
livro quando tomei conhecimento de Jouve. Nossa concepção do efeito da
psicanálise em certas horas converge, em outras toma caminhos diferentes. Nossa
visão trabalha com a sistemática produção do autor – não a sua intenção – e com
o mecanismo de engano de toda produção mitológica e inconsciente. O certo é que
não conheço até agora livro mais completo do que L’effet-personnage dans le
roman[2],
apesar de minha discordância com tantas formalizações, esquemas e gráficos.
Operando apenas com a análise do
personagem, Zéraffa investe pesadamente na tentativa de apreender o fenômeno da
passagem de uma figura de papel, um ator, um representante de um comportamento
humano, e adentrar-se na psicologia do personagem, tanto e convicentemente, até
que ele se torne uma pessoa. Buscou o recorte de quarenta anos dos
romances vanguardistas do século passado e que fez uma revolução, das maiores,
na expressividade romanesca (nada mais nada menos do que os romances de Joyce,
Proust, Mann, Gide, Kafka e os outros da modernidade). Uma das grandes teses de
Zéraffa é que modificando a psique dos personagens logo haveria uma mudança de
expressão estética. A interiorização do personagem levou a maior complexidade
experimental e expressional. A necessidade de aprofundar-se na mente dos personagens,
torná-los mais vizinhos a nós, fazê-los íntimos e densos, levou a uma estética
mais pessoal e que a estética do século XIX não podia mais comportar ou
representar esse mergulho no inconsciente do personagem.
... nosso estudo conjuga duas pesquisas: uma de ordem
psicossociológica – tendo por objeto a pessoa – e outra de caráter estético –
tomando por objeto a vida das formas. Associando essas duas pesquisas, nossa
maneira de proceder irá distinguir-se daquela do sociólogo, que, com justiça,
concebe o romance como o significante privilegiado do estado de uma sociedade,
e pode descobrir relações necessárias entre as estruturas de uma obra e os
traços essenciais de um momento de uma civilização; distinguir-se-á também
daquela do psicólogo que, legitimamente, encontra num romance a descrição de
fatos psíquicos. De nossa parte, consideramos a pessoa, mas no romance; isto é,
tal como a traduz uma linguagem que tem suas próprias leis e estruturas, a
linguagem de uma arte.[3]
Não nos interessa, como vários já fizeram, estudar o
personagem como percurso ou historiar sua trajetória. Não apenas o bom e
despretensioso livro de Forster, as manifestações folclóricas em Propp e as
categorias dos estruturalistas, apontaram para uma tipologia do personagem, o
que muito contribui para o conhecimento do surgimento das figuras no texto.
Várias tentativas de criar uma tipologia para os personagens já existiram,
mesmo no florescer do gênero romanesco. Elas esclarecem e ajudam a
classificação, mas não resolvem, para nós, o problema do fenômeno do
personagem, sua caracterização como elemento visceral da obra de arte
literária, instrumento de prática e exercício de fabulação. Logo nas primeiras
manifestações dos grandes romances do século XVIII, “Johnson chamava
‘personagens de costumes’ e ‘personagens de natureza’”, definindo com a
primeira expressão os de Fielding, com a segunda os de Richardson:
Há uma diferença completa entre personagens de
natureza e personagens de costumes, e nisto reside a diferença entre as de
Fielding e as de Richardson. As personagens de costumes são muito divertidas;
mas podem ser mais bem compreendidas por um observador superficial do que as de
natureza, nas quais é preciso ser capaz de mergulhar nos recessos do coração
humano. (...) A diferença entre eles (Richardson e Fielding) é tão grande
quanto a que há entre um homem que sabe como é feito um relógio e um outro que
sabe dizer as horas olhando para o mostrador[4]
Entre outros autores que usaram o
personagem para estudar algum fenômeno sociológico-literário está o de Ian Watt
com seu Mitos do individualismo moderno, onde estuda alguns
protagonistas de clássicos para marcar a ascensão do romance (outro título
seu), a afirmação da modernidade e, ao mesmo tempo, entender a projeção de
concepções do personagem que permaneceram no imaginário dos leitores e passaram
de personagens a mitos sociais. Eles são Fausto, Dom Quixote, Dom Juan e
Robinson Crusoé. Watt e Campbell muito se aproximam, embora o primeiro trabalhe
com uma visão antropológica e o segundo com um modelo junguiano. Acreditava eu
que os mitos já correspondiam não apenas à necessidade de dar respostas não
científica aos fenômenos naturais e, como Malinowski, os mitos mantinham a união
grupal e ratificavam e sacralizavam as instituições sociais. Campbell, ainda
que o próprio Ian Watt o veja como redutor, analisa o mito como modelos que se
repetem desde as mais prístinas expressões. Desta maneira, os mitos revelam um
inconsciente coletivo, o que não aproveitamos de todo, mas nos alertou para uma
possível gramática de formação do personagem. Por isso, distinguimos a
mitologia de forma geral e as mitologias individuais dos autores literários
para formação de seus personagens. “A primeira tarefa do herói consiste em
retirar-se da cena mundana dos efeitos secundários e iniciar uma jornada pelas
regiões causais da psique”, afirma Campbell. Não usamos de forma assertiva as
conclusões de Campbell, mas sua presença permanece aqui e ali.
Os arquétipos a serem descobertos e assimilados são
precisamente aquele que inspiraram, nos anais da cultura humana, as imagens
básicas dos rituais, da mitologia e das visões. Esses “seres eternos do sonho”
não devem ser confundidos com a figuras simbólicas, modificadas
individualmente, que surgem num pesadelo ou na insanidade mental do indivíduo
ainda atormentado. O sonho é o mito personalizado e o mito é o sonho
despersonalizado; o mito e o sonho simbolizam, da mesma maneira geral, a
dinâmica da psique.[5]
Reconhecemos que só esta afirmação – que é
a única de Campbell, já que o restante do livro é para provar com exemplos sua
tese – é simplista e, por essa razão, utilizamos também, entre outros, citados
e não citados, pressupostos de Cassirer em relação ao mito. A concepção do mito
como linguagem, e que “a consciência teórica, prática e estética, o mundo da
linguagem e do conhecimento, da arte [...] todas elas se encontram
originalmente ligadas à consciência mítico-religiosa”[6], insinuou-se em nossa
análise para sugerir que haveria uma gramática do personagem. A ficção, é
óbvio, não é uma criação coletiva, mas a formação gestáltica do personagem como
elemento constitutivo de uma protonarrativa que, junto a uma criação
idiossincrática e de “mitologia pessoal”, forneceria um modelo que o leitor já teria
incorporado a sua dinâmica mental.
Aponta Cassirer:
O caráter comum dos
resultados, das configurações que produzem, indica, aqui também, que deve haver
uma comunhão última na função do próprio configurar. Para reconhecer esta
função como tal e expô-la em sua pureza abstrata, cumpre percorrer os caminhos
do mito e da linguagem, não para a frente, mas sim para trás – cumpre
retroceder até o ponto de onde irradiam ambas as linhas divergentes. E este
ponto comum parece ser realmente demonstrável, já que por mais que se
diferenciem entre si os conteúdos do mito e da linguagem, atua neles uma mesma
forma de concepção mental. Trata-se daquela forma que, para abreviar, podemos
denominar o pensamento metafórico. Portanto, parece que devemos partir da
natureza e do significado da metáfora, se quisermos compreender, por um lado, a
unidade dos mundos míticos e linguísticos e, por outro, sua diferença[7].
Não se procura aqui uma análise do
personagem preso a uma linha crítica específica, mas entender o fenômeno
utilizando todo o material a que tivemos acesso para formular sua gênese, sua
conformação e sua atuação. Diferentemente do personagem das artes dramáticas
que se corporificam, o personagem da literatura não dispõe de mecanismos
visuais e sua corporificação advém de um mecanismo complexo e requer do leitor
uma outra experiência ontológica e epistemológica. Ao mesmo tempo que não pode
funcionar sozinho e ter de atuar num espaço/tempo e mover-se para promover uma
cinese que permita que a trama se concretize, o personagem não é apenas mais um
elemento da narração, mas o catalizador de uma série de experiências emotivas e
sensoriais que leva autor e leitor a um mundo de provocações existenciais.
Este livro é mais especulativo que
afirmativo. Não desejamos que nossa análise seja vista como um estudo fechado,
mas que tenha a simpatia do leitor para uma aventura inquieta e interativa. O
que em alguns momentos pode soar como pretencioso ou indiscutível é apenas um
descuido da escrita. Nosso propósito é o compartilhamento de inquietações sobre
este fenômeno que nos fascina e que foi preciso escrever sobre ele a fim de
sossegar algumas perguntas que ao longo de anos nos perseguiam.
[1] “Notre intention est plutôt de nous situer
sur un terrain autre que celui d’une psychologie sociale, ou d’une esthétique,
terrains qui sont ceux de M. Zeraffa, pour privilégier une étude que rende au
personnage sa détermination d’objet stylistique romanesque, étude qui cependant
pourra intégrer, mais sans privilégier, le “point de vue” de l’auteur sur sa
creátion, donc, également et par ce biais, une certaine conception de la
“personnage” historiquement et idéologiquement datée. Simplement, nous
choisirons d’accéder à cette détermination historique et idéologique en
l’assimilant à un type et pacte de communication (communication realiste
– vraisemblable – pédagogique) et à un style d’epoque (l’escriture
artiste-impressionniste), plutôt qu’à une donnée philosohique ou morale.”
HAMON, Philippe. Le personnel du roman. Le sistème des personnages dans les
Rougon-Macquart d’Emile Zola.
Genève: Droz, 2011. p. 14.
[2]
“Pour reprendre la termonologie de W.Iser, nous allons attacher au pôle esthétique
du roman, non à son pôle artistique: ‘on peut dire que l’ouvre
littéraire a deux pôles: le pôle artistique et le pôle esthétique. Le pôle
artistique se réfère au texto produit par l’auteur tandis que le pôle
esthétique se rapporte à la concrétisation réalisée par le lecteur’. En termes
linguistiques, nous étudierons la force perlocutoire du texte (as
capacite à agir sur le lecteur) plutôt que son aspect illocutoire (l’a
intention manifestée par le auteur).” A citação de Iser vem do seu livro O
ato de leitura, teoria do efeito estético. Vicent Jouve o cita em seu livro
L’effet-personnage dans le roman. Paris: Press Universitaire de France,
1992. p. 14.
[3]
ZÉRAFFA. Michel. Pessoa e personagem. O romanesco dos anos de 1920 aos anos
de 1950. Tradução Luiz João Gaia e J Guinsburg. São Paulo: Perspectiva,
2010. p. 9.
[4]
Citado por Antonio Candido ap. CANDIDO, A., ROSENFELD, A., PRADO, Decio de A.,
GOMES, Paulo E. S, in A personagem da ficção. 3ª ed. São Paulo:
Perspectiva, 1972. p. 61.
[5]
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Tradução Adail Ubirajara Sobral.
São Paulo: Pensamento-Cultrix, 1989. p.27
[6]
CASSIRER, Ernest. Mito e linguagem. 3ª ed. Tradução J. Guinsburg e Miriam
Schnaiderman. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 64.
[7]
Idem, p. 102.
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