FABIO
DE SOUSA COUTINHO
DISCURSO DE POSSE NA ACADEMIA BRASILIENSE DE
LETRAS; BRASÍLIA, DF,14.3.2013
Quando
Milton Campos faleceu, Carlos Drummond de Andrade, ninguém mais, ninguém menos,
escreveu sobre o amigo morto: “Ele foi o homem que eu queria ter sido”.
Sr. Presidente da Academia Brasiliense de Letras, Prof. Carlos
Fernando Mathias de Souza, Sr. Presidente da Associação Nacional de Escritores,
Dr. José Peixoto Júnior, ilustres confrades, querida família, caríssimos
amigos, senhoras, senhores,
Ao me candidatar à vaga
de Waldemar Lopes nesta Academia, tive plena consciência da dimensão da
empreitada, conhecedor que sou da biografia do incomparável sonetista e do
edifício estético que ele construiu. O que não me ocorreu naquele momento foi a
circunstância de que o patrono da Cadeira n° XIX é Castro Alves, nome que, por
si, constitui caso único de amálgama de substantivo e adjetivo, representando o
que há de mais importante poeticamente e mais relevante politicamente, na
História da Inteligência brasileira.
Deparei-me, portanto, com um desafio infinitamente superior ao
que já sabia enorme, a exigir que me superasse, mesmo em ambiente de louvação.
Tive presente, então, a título de lição a ser entendida e resolvida a contento,
a máxima de um de meus maiores ídolos literários, George Bernard Shaw. Escreveu
o sábio irlandês: “Há duas tragédias na vida. Uma é não conseguir o que deseja
seu coração. A outra é conseguir”.
Ora, tragédias se enfrentam. Elas nos arrastam a profundezas
insondáveis, ou nós as carregamos como os degraus que devemos escalar na busca
da coisa mais rara do mundo, viver, já que a maioria das pessoas apenas existe.Viver passou, assim, a dar o tom e o sentido desta homenagem a dois escritores, cidadãos e brasileiros invulgares, Castro Alves e Waldemar Lopes, este último nascido no mesmo ano de 1911 em que se completaram os quarenta anos da morte de nosso patrono na Academia Brasiliense de Letras.
Sim, Antonio Frederico de Castro Alves nasceu na Bahia em 14
de março de 1847 e lá pereceu em 6 de julho de 1871. Foram apenas vinte e
quatro anos, mas que outro patrício percorreu com tanta intensidade uma
aventura vital tão curta? Vindo ao mundo no auge do regime servil, Castro Alves
contra ele desde muito cedo se rebelou, tornando-se um jovem estudante de
Direito, primeiro no Recife e depois no Largo de São Francisco, em São Paulo,
que, orgânica e sistematicamente, o execrou, como evidencia o texto integral do
assombroso OS ESCRAVOS, publicado postumamente, em 1883.
No penúltimo ano de vida de Castro Alves, 1870, viera a lume
outra estupenda obra poética, ESPUMAS FLUTUANTES, em que o imenso baiano cantou
o lirismo que pontuava aquele período de nossa história literária, e que passou
a situá-lo, com todos os méritos, ao lado de Gonçalves Dias, Álvares de
Azevedo, Casimiro de Abreu e Fagundes Varela, como um dos expoentes geracionais
do romantismo na poesia brasileira.
Orador e poeta de virtudes superlativas, Castro Alves soube
engajar-se na grande causa política e social de seu tempo, sem descuidar da
própria razão de ser da humanidade, o amor, nas suas mais diversas
manifestações, conferindo caráter de indissolubilidade ao elo criado entre sua
vida e sua arte.
E
é isso que se depreende do ensinamento invariavelmente clarividente de Antonio
Carlos Secchin, que sentencia, em síntese irretocável: “(...) com a crescente
especialização dos estudos universitários, o campo da palavra compartimentou-se
em diversas áreas do saber, sem, todavia, abolir de todo o antigo vínculo que
irmanava a palavra da tribuna e a palavra literária, cujo consórcio maior, em
nossas letras, parece cristalizar-se no verbo candente de Castro Alves”.
Como
que a corroborar a lição lapidar do mestre carioca, ouçam-se os versos
arrebatadores do canto V de O NAVIO NEGREIRO (Tragédia no Mar), em que o bardo
extravasa seu inconformismo e sua revolta diante dos horrores que infestavam o
transporte marítimo de povos africanos para o Brasil:
“Senhor
Deus dos desgraçados!
Dizei-me
vós, Senhor Deus!
Se
é loucura... se é verdade
Tanto
horror perante os céus?!
Ó
mar, porque não apagas
Co’
a esponja de tuas vagas
De
teu manto este borrão?...
Astros!
noite! tempestades!
Rolai
das imensidades!
Quem
são estes desgraçados
Que
não encontram em vós
Mais
que o rir calmo da turba
Que
excita a fúria do algoz?
Quem
são? Se a estrela se cala,
Se
a vaga à pressa resvala
Como
um cúmplice fugaz,
Perante
a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...
São
os filhos do deserto,
Onde
a terra esposa a luz.
Onde
vive em campo aberto
A
tribo dos homens nus...
São
os guerreiros ousados
Que
com os tigres mosqueados
Combatem
na solidão.
Ontem
simples, fortes, bravos...
Hoje
míseros escravos,
Sem
luz, sem ar, sem razão...
(...)”
Ao
valer-se da persuasão retórica, sob forte influência de Victor Hugo, Castro
Alves se colocou à frente de seus contemporâneos, impregnando sua poesia
libertária dos sentimentos mais nobres, das perplexidades mais coerentes, da
indignação mais fundada, enfim, a obra do abencerrage de Curralinho constitui-se,
nos anos maculados que ainda marcariam nosso oitocentismo, na dicção da
resistência, no discurso prodigioso da arte poética em face do incompreensível,
do irracional, do intolerável.
É certo que a altíssima poesia de Castro
Alves não foi a primeira nem a única voz a condenar a face do regime imperial
que humilhava e entristecia as noites dos lares brasileiros, mas seguramente
deu, em tal mister, o toque decisivo que caracteriza os gestos induvidosos.
O inigualável baiano morreu no já citado
dia 6 de julho de 1871. Em 28 de setembro daquele mesmo ano, como resultado
direto e consequencial de sua empolgante militância abolicionista, foi
promulgada a Lei do Ventre Livre. Ela passou a impedir que a descendência dos
explorados, dos maltratados e dos desafortunados viesse ao mundo sob o jugo de
uma aberratio naturae, de
monstruosidade institucionalizada que persistia em manchar o processo
civilizatório nacional. O passo seguinte, e definitivo, veio em 13 de maio de
1888, quando a Princesa Redentora assinou o ato formal que pôs o Brasil em dia
com a História.
Exatos
dezoito meses depois, esvaziada a Monarquia de um de seus pilares, chegou, vitoriosa,
a República. Mas esta, não vou creditar a Castro Alves, não, porque fui educado
e formado no princípio de que tudo na vida deve ter um limite, inclusive as
mais incontidas admirações.
Meu
notável patrono viveu breves, mas palpitantes vinte e quatro anos. Meu singular
antecessor viveu noventa e cinco longos, igualmente intensos anos.
Waldemar
Lopes foi poeta desde sempre, vez que LEGENDA, de 1929, saiu do prelo quando
ele tinha apenas dezoito anos de idade. O reconhecimento da qualidade superior de
seus sonetos veio muito tempo depois, com a inclusão de alguns deles na segunda
edição da Antologia dos Poetas Brasileiros Bissextos Contemporâneos, organizada
por Manuel Bandeira, em 1965. Por um longo período de cerca de quatro décadas,
Waldemar dedicou-se, quase exclusivamente, a atividades jornalísticas e
burocráticas.
A
volta do poeta ao livro ocorreu em 1971, com SONETOS DO TEMPO PERDIDO, que
recebeu o Prêmio PEN Clube do Brasil. A partir daí, as obras se sucederam,
incluindo incursões pela prosa ensaística.
Em
Brasília, para onde veio na condição de Diretor do Escritório da Organização
dos Estados Americanos, simultaneamente com o de representante de sua
Secretaria-Geral junto ao Governo brasileiro, Waldemar Lopes teve oportunidade
de desenvolver fascinante atividade intelectual.
Eleito
para esta Academia, ocupou também a secretaria da instituição; foi vice-presidente
da Associação Nacional de Escritores, a ANE que hoje nos abraça; durante quatro
anos (dois mandatos) exerceu a presidência do Clube de Poesia de Brasília, de
que é um dos fundadores; colaborou com o Conselho de Cultura da Capital
Federal, na condição de membro das Comissões Julgadoras dos concursos cujos
prêmios eram distribuídos por ocasião dos Encontros de Escritores, que reuniam
intelectuais de todas as unidades da Federação. Em suma, o próprio Waldemar
considerava esse período de Brasília o mais fecundo de sua vida, no plano
literário, a começar pelos livros que nele publicou.
Ao
alcançar os sessenta e cinco anos, em 1976, desligou-se da OEA, atingida que
fora a idade-limite estabelecida no regulamento da Entidade para o seu pessoal
ativo. Chegara, então, a hora de realizar outro sonho: o de fixar residência
definitiva na sua querida Teresópolis e lá esperar a visita da “indesejada das
gentes”.
Na
bela cidade da serra fluminense, desenvolveu uma atuação ímpar, bastante lembrada
e exaltada. Por seis anos, exerceu a presidência da Academia Teresopolitana de
Letras; promoveu cursos e concursos, visando, sobretudo, a estimular as novas
gerações no gosto das letras; levou a Teresópolis escritores de nomeada, do
Rio, de São Paulo, de Brasília, de Belo Horizonte – entre eles, numerosos
membros da Academia Brasileira de Letras -, para que realizassem conferências
sobre temas e assuntos literários; por incumbência do Governo local,
reorganizou e presidiu o Conselho Municipal de Cultura. Atuou, em todas essas
frentes, como um fiel seguidor do pensamento do filósofo espanhol José Ortega y
Gasset, segundo o qual “A cultura é uma necessidade imprescindível de toda
vida, é uma dimensão constitutiva da existência humana, como as mãos são um
atributo do homem”.
Ao
deixar Teresópolis, em 1984, para atender ao desejo de sua esposa Iracy, que
sonhava retornar ao seio da família, em Pernambuco, para ali morrer, Waldemar
doou à cidade doze mil livros de sua biblioteca particular, composta de
dezessete mil títulos!
No
Recife, prosseguiu no cultivo da amizade e da literatura, transformando sua
casa em ponto de encontro de escritores, que para lá acorriam, em romaria, ao
generoso Sabalopes, na busca da palavra sapiente e serena de companheiro cujo
caráter se firmava sobre duas sólidas e inabaláveis pilastras, que o tornavam
um ser humano elevado: o amor e a poesia.
Em
termos inspirados, Vieira de Melo definiu a pessoa de Waldemar Lopes: “Esse
pernambucano estranho, aparentemente tão normal, tão convencional, tão igual a
todos nós, uma espécie de São Cristóvão passado a limpo por São Francisco de
Assis, é na realidade uma colônia de almas, uma antena de visões e sensações
finíssimas, por assim dizer inapreensíveis”. E o saudoso Cyl Gallindo, escritor
da simpatia de muitos de nós, em Brasília e no Recife, resumiu: “Sobre gente do
quilate de Waldemar Lopes, afirma-se : é um homem completo”.A obra poética de Waldemar ostenta impressionante fortuna crítica, traduzida numa seleção do que de mais sério se produziu em nosso país, no fértil terreno das letras.
E, dentre tantos, fico
com a palavra a um tempo culta e erudita de Abgar Renault, que viu em Waldemar
Lopes o renovador do soneto em nossa língua, e com o depoimento sem paralelo de Manuel Bandeira,
para quem “Os SONETOS DO TEMPO PERDIDO (...) representam poesia da melhor
escrita no Brasil.”
E
aqui está a prova, como convém a um leitor e admirador incondicional, tirada de
CINZA DE ESTRELAS, cujo lançamento, em 2001, assinalou o nonagésimo aniversário
do autor, em 1º de fevereiro daquele ano:
LIÇÃO
ANTIGA
Entre as filas
de verde um homem vem e vai:
na moldura
rural, o seu vulto pequeno
sob o capote
escuro. Esse vulto é o do Pai,
a irrigar o
pomar, no aclive do terreno.
Facho desfeito,
o sol sobre a paisagem cai
e a água
rebrilha, branca. O céu, azul-sereno, faz-se um canto de luz que flutua e se esvai
na asa leve da
brisa. O dia esplende, pleno.
E tudo o Pai esquece, a regar as raízes:
a vida quase ao
fim, o corpo a definhar,
a insônia, a
tosse rouca, a febre, as hemoptises.
Seu legado será
esta lição perfeita:
se a morte se
aproxima, é tempo de plantar;
outros farão
depois a festa da colheita.
Meu
exemplar de CINZA DE ESTRELAS possui a seguinte dedicatória, pérola de modesta
coleção de autógrafos: Aos queridos “amigos de infância” Elizabeth e Fabio,
afetuosa lembrança de sua vinda alegre ao Recife em junho de 2004. Com o
fraterno abraço do Waldemar.
Sr.
Presidente, Este 14 de março, Dia Nacional da Poesia, traduzindo a mais justa das homenagens ao inexcedível Patrono da Cadeira n° XIX, é data muito cara a um simples, mas inveterado, leitor de poemas, pois também homenageia dois outros esplêndidos vates de nossa pátria poética, meu próprio antecessor nesta casa de cultura e o amigo que primeiro me incentivou a nela ingressar, Anderson Braga Horta. Em sua rica e abrangente biblioteca, com a amabilidade e a fidalguia que lhes é inerente, D. Célia e Anderson há anos me acolhem de portas e braços abertos. Tanta lhaneza acabou gerando a iniciativa do convite que fiz ao Anderson para que me recebesse, aqui e agora. O coração tem razões que a razão reconhece.
Registro,
ainda, que estão hoje, entre nós, para minha felicidade, alguns colegas e amigos
de adolescência, juventude e início de advocacia no Distrito Federal de meu
nascimento, o Rio de Janeiro dos bairros do Jardim Botânico, do Leblon e de
Botafogo, da Lagoa Rodrigo de Freitas, da Praia do Arpoador, do Colégio e do Mosteiro
de São Bento, da Faculdade de Direito da Rua do Catete, do Lamas, do Teatro
Municipal, do Estádio Mário Filho, do Fluminense Futebol Clube e de tantas
outras maravilhas cuja enumeração taxativa poderia instalar o enfado em hora
reservada tão–só à convivência amena.
Srs.
Acadêmicos, sra. Acadêmica,
Ao
me abrigar em seu convívio, V. Exas. dignificaram uma vida dedicada à bibliofilia,
à palavra impressa, à paixão da leitura, ao reconhecimento de que os livros, máxime
os clássicos, aqueles que nascem e permanecem contemporâneos, permitem fazer a
existência menos vulnerável aos estorvos do quotidiano e, em alguma medida, não
tão avassaladoramente sartreana, naquilo em que nos ensejam isolar as mazelas e
a miséria que perpassam as trajetórias de todos e de cada um.
Epigrafei
esta oração acadêmica com passagem antológica de uma figura central de nosso modernismo,
Carlos Drummond de Andrade. Com ela, busquei transmitir a essência da homenagem
que minha alma genuinamente brasileira devia a um grandioso patrono baiano,
Antonio Frederico de Castro Alves, e a um formidável predecessor pernambucano,
Waldemar Freire Lopes.
A
exemplo do que tenho feito constante e prazerosamente ao longo dos últimos
quarenta anos de infindáveis e compensadoras leituras poéticas, pois “um poema
deve ser uma festa do intelecto”, como disse Paul Valéry, recorro a outro
magnífico bardo, cujo centenário de nascimento os brasileiros festejaremos, ao
longo deste ano, para, em paráfrase de estrofe de célebre soneto, revelar a
todos os que aqui vieram, a quantos acá não puderam estar, e mesmo àqueles que
não mais pertencem a nosso espaço físico, que
De tudo, à gratidão serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e
tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dela se encante mais meu pensamento.
A
meu honrado e venerado antecessor, declaro, alto e bom som, para que, esteja
onde estiver, ouça, reconheça e guarde: Waldemar, velho querido, você é o homem
que eu continuo querendo ser.
Obrigado.
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