Diferente da
literatura, a cidade no cinema é uma cidade, do ponto de vista ótico, real. Em Taxi Driver, a cidade que Scorsese nos
oferece é uma cidade “real”. Vemos Nova York, os prédios, as ruas, Manhattan,
as calçadas e tudo o mais. Um cineasta já havia comentado que o cinema é uma
arte realista, que mesmo O cão andaluz,
de Buñuel, era um filme “realista”, no sentido de que se via, concretamente,
tudo o que estava na tela, ainda que a cena fosse incongruente ou absurda,
fantástica ou surrealista.
A
cidade no cinema é oticamente realista, mas apresenta um ponto de vista
subjetivo, às vezes mais brando, outras vezes mais incisivo. No caso de Taxi Driver, Travis, o taxista
personagem principal do filme, vê uma Nova York diferente. Desta maneira, ele
personaliza Nova York. Aquela cidade friamente fotografada, realista, distante,
torna-se agora uma cidade subjetiva, pessoal, pertencente a um foco
idiossincrático. Logo, a cidade de Nova York, em Taxi Driver, não é uma cidade real.
Numa
cena bastante significativa, Travis pega em seu táxi o senador Palantine,
candidato a presidente, mostra-se simpático, acredita que ele pode ser bom para
a cidade e, no meio dessa conversa ou discurso de Travis, o taxista perde o
controle e começa a falar que Nova York é uma cidade suja, cheia de podridão
humana, degenerada, decaída e que ele, Travis, acredita que o candidato poderá
“limpá-la” dessa podridão. Ora, aí está a cidade de Travis, a Nova York de
Travis: suja, de uma sujeira humana, cheia de gigolôs, prostitutas, drogados,
neuróticos, babilônia decadente. Uma Nova York insone, marginal, giratória. Uma
Nova York que não dorme e abriga refugiados da Guerra do Vietnã, como Travis,
pessoas altamente solitárias, que não conseguem criar um intercâmbio social,
isoladas, divorciadas da cidade em si, que se torna então um lugar apenas para
reunir o conglomerado humano disperso por ruas e apartamentos sujos, pequenos,
desorganizados, habitados por aqueles que a cidade deveria acolher, mas faz o
contrário, isola-os, segrega-os e neurotiza-os.
Alguns
críticos notaram que Taxi Driver
devia muito a John Ford no que diz respeito ao herói do filme tentar resgatar
heroínas que não querem ser resgatadas. Essa ação equivocada, que faz do Travis
um justiceiro trapalhão, é também uma forma de o personagem limpar o lixo da
cidade, principalmente no que se refere à atitude dele com a prostituta vivida
por Jodie Foster. A solidão de Travis o incita a dialogar consigo, transformando
o espelho em seu oponente e componente. O espelho – a famosa cena que ele
pergunta agressivamente, “você está falando comigo? você está falando comigo?”
– passa significativamente a representar que a sua face também o agride, que
está dentro dele o inimigo, que Travis não se conhece, aquele que está no
espelho é um estranho. E, como um estranho, numa cidade grande, é um
adversário, um oponente, alguém que deve ser tratado com agressividade, alguém
que não pode nem mesmo ser olhado ou olhar.
Existem
várias cidades no cinema. A lista é grande e não vale a pena enumerá-las, mas
basta lembrar as cidades imaginárias, as cidades do futuro, a reprodução das
cidadezinhas provincianas americanas. O papel do cenário em lugar das cenas
exteriores, onde o diretor filma na rua, mostra que, mesmo no cinema, as
cidades também são imaginárias. Nos anos sessenta e setenta do século XX,
principalmente, o cinema (Fellini, Goddard e Bergman) buscava, de maneira
brechtniana desmitificar a caixa preta, o caráter ilusório e vários filmes
terminavam, como em E la nave va, de
Fellini, com a câmara se afastando e mostrando o mecanismo falso de filmagem, o
set em sua nudez tecnológica, as câmaras e os operadores de câmara, vídeo, o
diretor etc.
O
cenário – muitas vezes percebido pela audiência – revela que a cidade pode ser
copiada. Ela aparece de forma metonímica (como a esquina em Sem fôlego, retirado do livro de Paul
Auster), de forma teatral como o cenário de Dançando
na Chuva na cena de Gene Kelly, ou mesmo de maneira metafórica no clássico Janela Indiscreta, de Hitchcock, entre
inúmeras outras. O cenário é uma sugestão da cidade real, mas não é a cidade
real. Ao mesmo tempo o cenário tem a mesma função da cidade real – ambas são
oticamente realistas, mas falsas do ponto de vista da percepção do espectador.
Ou melhor, ambas estão filtradas pelo subjetivismo do recorte que o diretor deu
à determinada cidade.
Em
Dogville, filme abstrato, sem cenário
(o cenário é intuído por marcações no chão), a cidade é apenas sugerida.
Mistura de drama e literatura, embora seja puro cinema, Dogville é uma prova concreta de que a cidade pode ser imaginada.
Assim como na literatura, o cinema também pode produzir ruas, casas, padarias,
esquinas, calçadas, apenas pelo poder de sugestão. Na literatura, o poder de
sugestão vem obviamente das palavras. No cinema, a imagem, junto com a ação e a
palavra, cria a cidade de interior. O curioso é que Dogville não trabalha nem mesmo com cenário. O que existe é um
vazio apenas preenchido pela imaginação do espectador. Aquilo que sempre foi
próprio da literatura (o poder de abstração) passa a pertencer a uma das artes
mais “realistas”: o cinema.
É
certo que estamos sugerindo que Dogville
é, como vimos tratando na literatura, uma cidade internalizada. Mas aqui há um
acréscimo: a cidade no cinema é uma abstração realista. Este paradoxo nos leva
a sugerir que a Nova York de Taxi Driver
é, também como a Paris de Balzac, em Pére
Goriot, uma cidade real como referida, mas uma cidade ideal como
referencial. Não há dúvida de que, visualmente, a Nova York de Taxi Driver é mais real e concreta. Está
ali, diante dos nossos olhos, enquanto Dogville
nos impulsiona para uma atividade de idealização da realidade urbana. Mas tanto
na realidade visual de um quanto na virtualidade abstrata de outro, ambos
trabalham com recortes de cidade, de perspectivas de cidade – uma nomeada e
mostrada; outra, irreal, sugerida, conceitual.
(continua)
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