Preservadas por colecionadores, edições originais restituem a ‘vontade autoral’ em capas, sumários e dedicatórias, permitindo a descoberta de novas trilhas na obra de escritores consagrados
Por Antonio Carlos Secchin*
A bibliofilia pode, para alguns, significar o mero entesouramento de livros preciosos — nesse caso, seu valor cultural é nulo; limita-se a enclausurar volumes em vitrines particulares, como bibelôs enfileirados para afagar a vaidade do dono. Mas ela pode, outras vezes, propiciar o ressurgimento de autores e livros esquecidos, ou permitir que se descubram inéditas trilhas na produção de escritores já consagrados. Nessa perspectiva, graças ao persistente exercício de bibliofilia, fui contemplado com a oportunidade de publicar a poesia reunida de Mário Pederneiras, considerado por vários estudiosos o introdutor do verso livre no Brasil; o livro de estreia de Cecília Meireles, “Espectros” (1919), dado como irreversivelmente perdido durante oito décadas; e os textos de juventude de Carlos Drummond de Andrade, os “25 poemas da triste alegria”, vindos a lume pela primeira vez em 2012.
Além da virtualidade dos resgates, outros fatores se descortinam ao olhar do bibliófilo, afeito à materialidade da obra e atento às margens peritextuais que ela comporta: capas, sumários, dedicatórias, indicação da tiragem. Ainda não se cogitou de mapear sistematicamente esse entorno inerente ao núcleo do livro, e que, mesmo em viés oblíquo, não deixa de iluminar questões relativas à prática e aos conceitos históricos de literatura. Exemplo bastante significativo se encontra nas plaquetes de poesia simbolista que quase clandestinamente circularam entre nós, em fins do século XIX e início do XX. Em geral, esses poemas se apoiavam num léxico requintado e discorriam sobre quintessências inacessíveis à sensibilidade comum. Tal consciência de excentricidade, de repúdio aos valores “vulgares”, se manifestava na superior qualidade do papel de edição, na profusão de ornamentos e de cores, que faziam do próprio livro uma espécie de metáfora antecipadora da arte “aristocrática” que ele iria professar. A tiragem diminuta indiciava prévio desinteresse em atingir audiência mais ampla — o oposto da estratégia dos escritores naturalistas, que primavam pelas narrativas algo apimentadas e facilmente assimiláveis, impressas em grandes tiragens com papel ordinário e vendidas a baixo preço. Portanto, o universo de leitores de uns e outros, simbolistas e naturalistas, já estava configurado no projeto gráfico-editorial dos respectivos volumes.
Mas, sem o acesso às publicações originais, como sabê-lo? Nada (salvo o fac-símile) substitui de modo pleno o manancial de informações de uma edição original, porque, ainda que o texto, em figuração moderna, aparentemente seja o mesmo, ele surge destituído de tudo que o cercava e que era então pertinente à sua plena caracterização como objeto de cultura: a capa de brochura (neutra, tipográfica; ou ilustrada, a revelar o diálogo da época entre palavra e imagem); as dedicatórias, a desvelarem jogos de afeto e de poder, literário ou social; os prefácios, incontornáveis instâncias legitimadoras, territórios de encômios para o autor e seu grupo literário. Com frequência (salvo as exceções de praxe) os editores consideravam que todo esse aparato era dispensável, e, nas reedições, tratavam de suprimi-lo, para baratear os custos de impressão. Restituir da melhor maneira possível a “vontade autoral”, no que tange a escritores antigos, é tarefa para a qual se conta com bibliotecas públicas (e seus acervos nem sempre disponíveis ou bem conservados) ou com os préstimos de bibliófilos.
*Antonio Carlos Secchin é poeta, ensaísta e membro da Academia Brasileira de Letras. Dia 12, às 18h, ele participa do Festival Literário do CCBB, na mesa-redonda “A memória e a estante”, com Eucanaã Ferraz e Córa Ronai, marcando a reabertura da biblioteca do centro cultural
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