(trecho do livro A ideologia do personagem brasileiro, Ed. UnB, 2007, 1° capítulo)
(...) O roubo da sabedoria
Iracema conta a história da índia tabajara que se apaixona pelo português Martim. O lusitano é aliado dos pitiguaras, que lutam contra os franceses e seus aliados, os tupinambás e os já citados tabajaras. De qualquer forma, Iracema consegue que Martim seja apreciado pelo irmão, Caubi, e pelo pai, o pajé Araquém. Iracema foge com o português, abandonando sua tribo. Engravida. Martim, junto com o índio pitiguar Poti, luta e vence os inimigos. Iracema dá à luz um filho chamado Moacir, que simbolicamente seria o brasileiro, e que quer dizer em sua língua “filho do sofrimento”. Ao final, Iracema morre de tristeza e o pai branco leva o filho consigo. “O primeiro cearense, ainda no berço, emigrava da terra da pátria. Havia aí a predestinação de uma raça?”, pergunta, irônico, o narrador.
No contexto da história do livro, ressalte-se a filiação do personagem autóctone: é filha do sonho. Logo no início, quando Martim se torna hóspede do pai de Iracema, trava-se um diálogo curioso. Martim é cercado, na cabana de Araquém, por belas mulheres. Ele, contudo, faz questão da presença da amada. Iracema contesta que não “pode ser tua serva. É ela que guarda o segredo da jurema e o mistério do sonho. Sua mão fabrica para o Pajé a bebida de Tupã”. A jurema, segundo as anotações do próprio José de Alencar, “é fruto amargo que tem o efeito de haxixe, de produzir sonhos tão vivos e intensos que a pessoa sentia com delícias e como se fossem realidade as alucinações agradáveis da fantasia excitada pelo narcótico”. Iracema seria portadora da chave da imaginação. O Novo Mundo sempre foi identificado com o paraíso perdido, produzindo até mesmo no imaginário europeu a visão idílica do bom selvagem. Nesse país de sonho, fantasia, de extravagâncias imaginárias, de fabulosos mundos, a presença branca e européia de Martim representa a quebra da ingenuidade de um mundo perdido. Martim, ao fazer de Iracema sua prisioneira por meio do amor, impede que esta continue a preparar a beberagem que dá sonhos ao pajé. É como se Martim também usurpasse os poderes sobrenaturais do autóctone. Martim não apenas se miscigena gerando nova raça, ele rouba o fruto do sonho. Obviamente Alencar não faria essa leitura, nem era sua intenção macular o que para ele era fantasia perfeita, amigável, pacífica: a união das raças e a conquista do Novo Mundo. Em outra passagem, Irapuã, chefe dos guerreiros tabajaras, investe contra Martim, acusando-o de ofender Tupã, “roubando sua virgem, que guarda os sonhos da jurema”. Os sonhos da jurema eram uma dádiva. Sem ela, o pajé despenca de sua autoridade mística. Iracema traía não somente a tribo dos tabajaras, sua nacionalidade primeira, mas traía o imaginário de seu povo. Era algo muito mais sério e que o próprio Alencar não se dava conta, entretido que estava em traçar um retrato da formação do Brasil no minúsculo esmalte de sua lenda cearense.
Conta o fato de Iracema ser filha de Araquém, um pajé, e não de um cacique. Ela, portanto, é filha não de um chefe político – o cacique –, mas de chefe da sabedoria, do conhecimento, e detentor da autoridade que lhe dá o xamanismo: o místico. É um saber da tribo e, nesse sentido, um saber americano, nosso, brasileiro. O estrangeiro receia esse saber. Martim, escondido na caverna de Araquém, mantém diálogo com Iracema. Diz o branco, na parte XIII:
"– O chefe (Poti) não carece de ti: ele é filho das águas (diz Iracema); as águas o protegem. Mais tarde o estrangeiro escutará as falas do amigo.
– Iracema, é tempo que teu hóspede deixe a cabana do Pajé e os campos dos tabajaras. Ele não tem medo dos guerreiros de Irapuã, tem medo dos olhos das virgens de Tupã."
O estrangeiro não teme a filha de Araquém, mas o que se esconde atrás dos olhos – conhecimento, sapiência – da filha de Tupã – deus do sonho e do telúrico. É o medo do conhecimento da nova terra, do novo espaço visitado. Alencar não intuiu o conflito, o choque de visões, o contraste de perspectivas e a dualidade das Histórias. Aqui são duas Histórias que se encontram – e se fecundam apenas nos olhos românticos de Alencar. Mas se Alencar não intuiu o conflito, apressou-se em apresentar a solução distensa da miscigenação compactuada e não fruto da anulação do outro. A história de Iracema é a história do não, é a história da recusa, da perda de identidade e da conquista pela supremacia cultural. Por isso Martim teme mais o saber da filha de Tupã que o tacape do inimigo.
O mito torna-se realidade
A história da literatura já viu aparecer personagens que tomaram vida própria, como Dom Quixote, Dom Juan, Madame Bovary e outros. Foram a complexidade dos personagens e o simbólico que cada um carregava, como projeção social, que deram a essas figuras de papel densidade desconhecida em outras expressões artísticas. A ficção escrita tinha o poder de imprimir no público personagens que eram projeções do imaginário coletivo. É curioso como figuras do romance – narrativa complexa e culta – tinham atingido a esfera do comum social. As figuras de Dom Juan e de Dom Quixote fazem parte do aparato metafórico do povo, ainda que a grande maioria desconheça Cervantes e, mais ainda, Tirso de Molina, em cuja peça pela primeira vez apareceu, na Espanha do século XVII, o personagem sedutor e irresponsável . O caso de Iracema é diverso. Ainda que se possa argumentar que o personagem de José de Alencar logrou certo alcance, jamais se poderia comparar o alcance de personagens como os anteriormente citados com Iracema. Os personagens como Madame Bovary, Dom Quixote e Dom Juan não só se fixaram na mente dos leitores como se criaram certos adjetivos que foram incorporados à linguagem corrente culta como bovarismo, quixotesco e donjuanismo. O que não ocorre com Iracema, mesmo restrito ao território brasileiro. O processo de criação de Iracema, para José de Alencar, comparando-se ao dos mitos literários aqui citados, é justamente o contrário. Cervantes, Tirso de Molina e Flaubert produziram personagens com grande densidade que vinham de encontro a um vazio ou expectativa da psique coletiva. Eles foram apropriados pelo imaginário do leitor porque representavam comportamentos míticos e arquetípicos, grosso modo, a loucura, a vaidade e a traição. Todos os três são muito mais complexos. Em Dom Quixote estão presentes outros elementos: a luta entre Davi e Golias, o sonho exacerbado contra a realidade medíocre. Em Dom Juan, a vacuidade humana, o narcisismo, a utilização da mulher (ou do outro). Em Madame Bovary, o cotidiano sufocante, a ausência de perspectiva, o papel da mulher na sociedade burguesa, a necessidade do sonho. E muitos outros mais. Essa possibilidade enorme de simbologia também é propícia para que o mito literário se espalhe e se fixe na sociedade, já que acolhe e representa vários anseios ali sublimados. Com Iracema, há um processo inverso. Há um esvaziamento. O autor não parte da complexidade da personagem. Ele se apropria da forma vazia do mito e tenta preenchê-lo com sua história de amor. Dessa maneira, Iracema é um personagem que serve a uma idéia e não a várias idéias que surgem baseadas na referencialidade excessiva e múltipla do personagem. O personagem recebe uma exterioridade e não projeta uma interioridade.
O projeto ideológico (...) continua...
(fim do trecho selecionado)
pgs 22 e 23 de A ideologia do personagem brasileiro
imagens retiradas da internet
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