(trecho do livro A ideologia do personagem brasileiro, Ed. UnB, 2007, 2° capítulo)
(...)
Pode-se inferir, conjugando os dois conceitos (máscara e jogo), e acrescentar que Capitu não apenas opera com os dois instrumentos como os condensa criando a máscara do jogo, ou seja, Capitu frui com o lúdico da dissimulação (dissimulação esta da personagem e dos olhos difusos do narrador). O narrador acusa em Capitu veleidades e perfídias que ele vê nela e acredita inerentes a ela. Neste olhar há dois procedimentos: no que ele vê, refere-se principalmente à concepção que Bentinho tem de sua amante (namorada, depois esposa); no tocante aos defeitos de Capitu (embora se possa argumentar que também pertencem à esfera do narrador ), pode-se concluir que as atitudes de Capitu são gestos de alguém comprometido com o disfarce, o embate entre sujeito submetido à realidade e a realidade submetida ao objeto que ela aparenta ser. Um outro elemento, também pertencente à máscara do jogo, pode-se agregar aqui: a assimetria (Bosi).
A assimetria funciona em Dom Casmurro de forma diversa da que funciona em “Noite de almirante”. Aqui, o narrador em terceira pessoa passa-nos a certeza da traição da noiva, o rompimento do pacto, o desvelamento de uma verdade social. Genoveva, em “Noite de almirante”, assume o desmascaramento social, enfrentando uma convenção. Em Capitu, a assimetria é dada internamente no narrador. É ele que, inseguro, tenta resgatar a imagem da mulher como traiçoeira e dissimulada. A assimetria só opera quando Bentinho deixa que, internamente, penda a balança para o objeto de observação que é Capitu. Ao sentir-se traído, a balança alça Capitu e deprime Bentinho. É um jogo de dissimulação não de Capitu, mas do próprio narrador projetando ( e introjetando ) a máscara do jogo que ele também forjou. A assimetria existe, isso é o importante, seja a realidade dos fatos seja a visão de quem os conta. A assimetria existe real ou imaginada. E quanto à máscara do jogo, o verdadeiro rosto social não pode ser revelado, mostrado em público, exposto à execração da comunidade que tem suas regras de conduta e ética, levando às vezes ao prazer da sedução, da dissimulação, do engodo e da farsa.
O inventário
O inventário que o narrador de Dom Casmurro empreende é um inventário adulto, racional, controlado. No capítulo II, o narrador relata que, cansado da monotonia, resolve escrever um livro:
"Jurisprudência, filosofia e política acudiram-me, mas não me acudiram as forças necessárias. Depois, pensei em fazer uma ‘História dos subúrbios’, menos seca que as memórias do Padre Luís Gonçalves dos Santos, relativas à cidade; era obra modesta, mas exigia documentos e datas, como preliminares, tudo árido e longo."
O narrador usa a ironia, analisa, observa, a retrospectiva não é emocional, mas intelectual, a ponto de reconhecer, na maturidade, que Capitu o havia enganado a vida inteira, segundo seu ponto de vista. Bento não tem certeza, levanta hipótese, acumula indícios, quer ver provas, busca na memória a traição dos gestos, mas tudo filtrado por um estilo depurado, decantado pelos anos. Essa tensão entre o controle irônico da situação do presente do narrador e o passado vivido entre emoções desconcertantes pelo personagem jovem não cria outra assimetria como a existente entre dois personagens: trata-se agora de um confronto de personalidades no interior do personagem cindido. Esse tipo de narrador e de personagem é o duplo onde o Outro é si mesmo. Quanto a Capitu, ela é o Outro incorporado ao eu do narrador. Não há cisão: aqui existe apenas uma apreensão parcial do personagem como emissor de significados interpretados. Capitu é feita à maneira do seu criador. Não lhe seria duplo, nem personalidade cindida, mas projeção do duplo e da personalidade cindida do narrador. Sendo projeção de conflito, o personagem torna-se também problemático e cindido de forma predicativa.
O projeto político
Há um projeto político para Bentinho, não apenas religioso ou fruto da crendice de sua mãe, dona Glória, que o quer levar ao seminário. No capítulo “A denúncia”, o agregado José Dias lembra que “a Igreja brasileira tem altos destinos. Não esqueçamos que um bispo presidiu a Constituinte, e que o Padre Feijó governou o Império...” Bentinho tem a perspectiva de inserção social por meio do capital intelectual e religioso que a época proporcionava. Os capítulos sobre o Padre Cabral e sua nova honraria, o título de protonotário apostólico ( XXXV e seguintes ), também se inserem nessa esfera de ascensão pelo espaço religioso. É a ordem do dever. Dona Glória, mãe de Bentinho, insere-se na ordem do dever de duas maneiras: pelo sentido em si como personagem, vida apascentada, viúva que renuncia à vida mundana, e de outro lado o apego irracional à sua promessa. Neste sentido, Capitu opõe-se, é o entrave, o elemento de reversão. O elemento de reversão não apenas desfaz ou impede a realização do vetor, o elemento de reversão aponta para outra saída, outro caminho, outro pacto. Criado um pacto novo, o antigo pacto se desfaz e em lugar dele nada é preenchido embora substituído. Fica o personagem então carregando um vetor frustrado anterior – no caso de Bentinho, a do religioso que abandona o projeto de ser padre e, logo, o que isso representa, laivos de beato ou de pessoa sem malícia – e agrega-se a nova versão – a do amante.
Capitu representa a ordem do desejo. Ordem do dever e ordem do desejo se conflitam – o casamento, nesse caso, é apenas ascensão social para a mulher. As famílias de Bentinho e Capitu vivem uma estagnação social. Em Bentinho são três viúvos e um agregado que habitam a mesma casa (dona Glória, o tio Cosme, a prima Justina e José Dias). O único que ainda mantém uma atividade é tio Cosme, descrito como tranqüilo, sem ambições, “formado para as serenas funções do capitalismo, tio Cosme não enriquecia no foro; ia comendo” (VI). Quanto à família de Capitu, Pádua, o pai, “era empregado em repartição dependente do Ministério da Guerra. Não ganhava muito, mas a mulher gastava pouco, e a vida era barata”. (XVI). Interessante observar que, no mesmo capítulo, Machado mostra a interinidade de Pádua num cargo que lhe gratifica melhor, mas o transtorna quando o perde. Pádua se deprime, quer morrer, pois foram embora o luxo temporário e a ostentação burguesa provisória. Capitu se parece fisicamente com a mãe, dona Fortunata. No mesmo capítulo, é observada pelo narrador que a vê ali “à porta dos fundos da casa, em pé, falando à filha, alta, forte, cheia, como a filha, a mesma cabeça, os mesmos olhos claros...” Contudo, as ambições abafadas, reprimidas, aqui e ali apresentadas como escapes da personalidade que o narrador capta, pertencem à esfera masculina da família: o pai. Pádua recorre à opinião pública para justificar seu abatimento e vergonha.
"Minha mãe falou-lhe com bondade, mas ele não atendia a cousa nenhuma.
– Não, minha senhora, não consentirei em tal vergonha! Fazer descer a família, tornar atrás... Já disse, mato-me! Não hei de confessar à minha gente esta miséria. E os outros? Que dirão os vizinhos? E os amigos? E o público." (XVI).
O espaço público de Pádua é o espaço masculino: do trabalho fora de casa, da ascensão social, da ordem pública instaurada não no espaço do comércio ou da atividade privada, mas da ordem pública estatal ( funcionário de Ministério ).
Ora, é Bentinho quem transgride a ordem do dever, enquanto a ordem do desejo de Capitu, no princípio, estava relegada a segundo plano, pois ela investia na ordem do dever. Mais tarde, segundo o ponto de vista de Bento Santiago, a ordem do desejo ( Escobar ) irá se sobrepor à estabilidade do casamento e à manutenção da ordem burguesa.
(...) continua
fim do trecho selecionado
pgs 48 e 49
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