domingo, 3 de abril de 2011
Os passos do Andarilho, José Neres
Ser andarilho é andar por toda parte e não pertencer a parte alguma. É
viver de amores efêmeros talvez fugindo de um amor verdadeiro. É sentir-se
estrangeiro na própria terra. É vagar, devagar, na pressa de não ter onde
chegar. É partir não só para conhecer outros lugares, mas para reconhecer-se
em outros lugares.
Estas são algumas das sensações que Ronaldo Costa Fernandes deixa nas páginas de seu livro Andarilho, publicado em 2000, pela Editora 7 Letras. Em textos de pequena extensão física, mas de extrema profundidade poética, o autor bifurca caminhos e descaminhos em uma encruzilhada de múltiplas vertentes
que deságuam em versos que levam o leitor a mergulhar em um turbilhão de
dores, angústias, ironias e em um mar de metalinguagem.
O eu lírico de Ronaldo Costa Fernandes flana por ambientes diversos, fazendo de cada ponto de parada um lugar e um não-lugar poético. Seu olhar se dirige ao infinito, mas não deixa de também fixar-se em detalhes aparentemente banais, como uma mesa “ignorada e múltipla como um garçom”, em uma menina brincando com seu bambolê, ou nas inúmeras pessoas que passam cotidianamente no eterno ir e vir das grandes cidades, com homens “que fedem seu calor de trabalho / como um usina expele fumaça / e vapor”
Em poemas curtos como frames de um redemoinho de cheiros, sons, imagens e de recordações, o andarilho se sente um solitário no meio de uma multidão e eternamente acompanhado no vazio insistente de sua solidão. Suas companhias são quase sempre as leituras feitas ao longo da vida, seus filósofos preferidos, seus artistas mais representativos, a imagem nublada dos inúmeros quartos em que dormiu, das muitas mulheres que teve em seus braços e a certeza dos caminhos ainda não percorridos. De uma forma ou de outra, o vazio e a ausência são suas inseparáveis companheiras.
No constante mudar(-se), o eu-poemático é até capaz de encontrar-se consigo mesmo em alguns momentos de sua caminhada, contudo, isso soa “como quem cruza com um desconhecido?, pois o mundo gira em torno da órbita/ do olho/só o olhar é o que importa”.
Grande burilador das palavras, o poeta não deixa de destilar a acidez de
suas ironias em muitos de seus versos, como é o caso do muito bem trabalhado
”Mulheres”, no qual diz: “fui/ criado/ mudo/ em cada cama/ que estive// busquei/
glórias/ só tive/ Marias“, ou em “Lição de Anatomia”, em que há a conclusão
de que “a vida é um erro:/ alguns chegam a ser sentenciados/ a oitenta anos de vida”.
Embora Andarilho seja um livro de poemas altamente imagéticos, no qual
a fanopéia se encontra em um lugar privilegiado, o autor não deixa que os
versos descambem para o mero reproduzir de imagens mentais. Ele destaca também em cada texto o poder transformador das palavras e deixa, além das frases de efeito, algumas lições de vida. É o que pode ser encontrado, por exemplo, no conselho para que o homem deixe de lado a passividade, “que é a forma de morrer estando vivo”.
São versos assim, mesclas de plasticidade e pragmatismo, que fazem do livro de Ronaldo Costa Fernandes uma obra que merece ser lida e relida, pois nós somos andarilhos pelas tortuosas estradas da vida.
ganhou, entre outros, os prêmios de Revelação de Autor da APCA, o Casa de las Américas e o Guimarães Rosa. No ano de 1998, edita Terratreme, poesia, livro que recebeu o Prêmio Bolsa de Literatura, pela Fundação Cultural do DF. Durante nove anos dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros da Embaixada do Brasil em Caracas. É Doutor em Literatura pela UnB. Em 2000, publica o livro de poemas Andarilho, da ed. 7Letras. Em 2004, sai Eterno Passageiro (Ed. Varanda). Em 2005, pela Ed. LGE, lança o romance O viúvo, que o crítico Adelto Gonçalves chamou “de uma das primeiras obras primas da literatura brasileira do séc. XXI”. Em 2007 lançou dois livros: Manual de Tortura (Esquina da Palavra, contos, 2007) e A Ideologia do personagem brasileiro (Editora da UnB, ensaio, 2007). Em 2009, sai A máquina das mãos, poemas, publicado pela 7Letras, que ganhou o Prêmio de Poesia 2010, da Academia Brasileira de Letras. Em dezembro de 2010 lança o romance Um homem é muito pouco. Memória dos Porcos é publicado em 2012. O difícil exercício das cinzas, de 2014, é seguido pelo livro de ensaios A cidade na literatura (2016) e, mais recente, Matadouro de Vozes (2018)
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