Nunca pensei que meu pai pudesse um dia estar aqui, atrás de mim, na garupa de minha moto agarrando-se em mim como se eu pudesse defendê-lo e guiá-lo. Sabe, não sei explicar muito bem, mas, sempre o achei um sujeito meio diferente dos outros pais. Não é que eu não goste dele, mas para falar a verdade eu o preferia mais velho, menos boy. Vou dizer uma coisa que parece meio besta, mas pelo menos pra mim, não tem esse negócio de maior aproximação entre filho e pai pelo fato de o pai dar uma de garotão, ainda acho que o que aproxima o filho de um pai é justamente aquela imagem tradicional de pai. A velhice num pai acho que aproxima, a juventude afasta, pelo menos sempre pensava nisso quando via sua falta de jeito até mesmo em me dar ordens. Não é, por exemplo, como o Galeano, pai do Frederico que, por acaso, é da sua idade embora pareça muito mais velho. Com ele tenho sempre intimidade suficiente para chegar e dizer:
- E aí, velhão. Dá pra sacar essa cerveja agora que eu tô duro?
- Tu só vive duro. Boto na conta do papai?
- Sei lá, dá teus pulos.
- Teu pai é um grande sacana, né? Pra ti não tem grana, mas pras putinhas dele não falta. Tento desconversar e digo - Que nada, ele tá quebrado. Quem vai querer ferro velho...
- Quebrado? Vi ele com a Liriel. Abre teu olho, cara!.
Tu tá perdendo para ele.
Dificil acreditar que tenha aceito o convite que eu fiz, repito. Principalmente agora que faço uma manobra a 100 por hora no viaduto e faço ranger os pneus do asfalto chamando a atenção duns caras num Toyota. Não porque ele ache moto algo incompatível com sua idade, mas porque não aceita que alguém, mesmo um filho, possua algo que gostaria de ter e que o deixe em situação desvantajosa perante seus desejos . É orgulhoso. Mas agora está aí, gosta de mim eu sei, deve ter feito um sacrifício danado para aceitar meu convite e o fez apenas porque gosta de mim, afinal de contas, um pai é um pai. Não é alguém a quem se deu um título de desembargador, ministro, rei, craque de futebol, não sei das quantas. É alguém que tem uma espécie de oração em torno de si que a gente finge não ver, mas sabe que um dia vai rezar, uma aura íntima parecida com a nossa, e que vem da pele. Sabe? Por mais que eu ache errado isso nele, digo, esse negócio de ele sair atrás de garotinhas deixando a minha mãe doente em casa, por incrível que pareça, isso me dá também algum orgulho, não sei como explicar, sempre fui muito ruim nisso de explicar, mas acho que...
Pôrra! Esqueci dele aí atrás. Acho que me fez um baita dum favor em aceitar ficar na garupa dessa moto, gostaria de agradecer, mas não consigo, sei que não consigo. Jamais fizemos isso, na verdade nunca fomos de beijos, abraços e gracinhas idiotas e não será agora.
- Sabe quem convocaram para a seleção, pai? – grito.
Não responde. Não escutou ou fez que não escutou.
Quem sabe já está arrependido de ter vindo, deve estar pensando que seria melhor que estivesse tomando cerveja e jogando porrinha com os amigos ou visitando suas fêmeas como diz mamãe. Gozado, repito, porque isso já não me causa tanta raiva quanto antes, quando eu era garoto? Essa sensação me deixa mal comigo mesmo, é como se eu estivesse sendo cúmplice de sua sacanagem. Ora, mãe é para ser sugada pelos filhos, não pelo marido e ele, que sempre foi um cara inteligente sequer me ensinou o que é o amor...Amor? Que amor? Será que isso existia antes deles? Duvidei do amor e duvido até hoje e isso sei que é uma herança deles.
Esse seu silêncio agora começa a incomodar-me, mas, tudo bem, sei que ele detesta perguntas, sempre foi assim. Devo reconhecer que eu também. A maior parte das perguntas as pessoas fazem quando estão sem assunto, e as respostas surgem para isso: para dar seguimento ao nada, por medo do silêncio que é como uma culpa para todo mundo.
Engraçado, quando bate o silêncio aparece logo o sentimento de culpa em uma das partes que estão conversando e acho que é isso o que está acontecendo comigo agora. Já fez muitos sacrifícios por mim, nem todos, eu sei, não posso exigir que me responda qualquer pergunta idiota que faço. Tenho de ter consciência de que apenas o fato de me permitir tê-lo por perto, quase indefeso, numa situação desvantajosa nessa garupa de moto, já é sacrifício suficiente para ele. Se não quer responder, não devo aporrinhá-lo. Mais tarde tento de novo, afinal de contas este silêncio quase parece uma coisa viva, um animal que estamos construindo, os dois. É como se fosse um terceiro amigo, um cúmplice da nossa récem-descoberta amizade.
Acelero. Passo para noventa, cem. Sei que ele não gosta mas não vai reclamar. (Ele sempre foi assim, vaidoso, quantas vezes o surpreendi penteando os poucos cabelos, enfeitando-se em frente ao espelho). Acelero ainda mais. De propósito? Nem sei. Tenho vontade de dizer: - Foda-se! Foda-se ele, fodam-se as relações, fodam-se os medos, foda-se a vida! Tenho mais é que aproveitar este instante único como se ao invés de vida existisse uma longa viagem de moto prolongando-se para além de tudo que existe, nessa hora em que sou mais forte do que ele e que de cima de minha moto posso afrontar a morte, a eternidade, o que vier. Como se a vida fosse apenas esse girar, esse seguir de moto sem rumo definido, como se o velocímetro fosse o coração de todos os relógios. Vá lá: um coração de filho e pai, um coração único. Epa! Como viemos parar aqui?
Não, não foi inconsciente: A Estação das Rosas. Percebo que vim para cá de propósito, para agradá-lo. Aqui reinam as putas, as menininhas; reinam os inferninhos, os cafagestes e gigolôs. Não sei se ele está gostando da minha iniciativa, pode concluir que estou buscando algum tipo de aproximação para pedir dinheiro. Não me incomodo, se até agora não falou nada é porque, pelo menos hoje, aceita que eu comande o seu destino. Tampouco preciso confirmar se é isso mesmo. “Maravilha! Como estão brilhantes as luzes, como parecem até suar, de uma maneira estranha!” Não dá para agüentar, vou tomar uma cerveja, preciso molhar um pouco esta garganta entupida de brilho. Passo entre os bares, entre os postes, entre os cafés, uma piranha acena pra mim. Não viro para olhá-la mas, atrás de mim, sinto que a sua cabeça virou-se para observá-la . Tenho vontade de dizer : - É gostosa, pai?, mas não sai, as palavras vêm até a boca, mas desistem. (Alguém disse que as palavras são seres vivos,até concordo com isso, mas se for assim, antes que as pronunciemos, devem parecer fetos, fetos em forma de espumas). Cuspo no vento. E lá se vão as palavras que viveriam. – É das boas, pai?...- insisto. Ele grunhe. Acho que disse Hum, hum...Certamente, não gostou de eu ter perguntado. Me aproximo da lanchonete que tem estacionamento para moto, vou pedir uma latinha de cerveja para mim e oferecer outra para ele.
Vai ser a primeira vez que vou oferecer-lhe cerveja, ele nunca me fez isso. Ou fez? Acho que aconteceu uma vez quando eu era criança, para provocar minha mãe. Disse : - Toma rapaz, é melhor que sonho de valsa. Isso foi muito tempo atrás, antes da vez em que pela primeira vez tentou me dar conselhos, como sempre, meio desajeitado. Eu já tinha dezoito anos e havia acabado de juntar-me à Tanímia que já tinha uma filha minha. Chamou-me para o escritório, disse que eu tinha de estudar, que tinha de já saber o que queria da vida. Disse que eu tinha de tomar cuidado com a mulher que eu tinha escolhido, não por ser a Tanímia, mas por ser uma mulher. Tinha de ter cuidado para não apaixonar-me, porque as mulheres eram bem melhores que os homens, mas que não convinha estragá-las, deixando-as saber disso. Que era mais seguro para o homem ter sempre mais de uma porque o que faz uma mulher gostar de um homem não é o homem em si, mas o que ele representa para ela. E um homem capaz de ter mais de uma sempre se multiplica em valor para uma mulher, embora elas o neguem de pés juntos. Eu escutei calado aquela ladainha, acho que ele estava era querendo justificar o que fazia com a minha mãe. Faz tanto tempo!
Sabe, algumas vezes cheguei a duvidar que ele gostasse verdadeiramente de mim. Quantas e quantas vezes quando era mais jovem eu pedia uma grana para comprar uma camisa ou um tênis e ele negava dizendo: - Jovem não precisa de roupa, o enfeite do jovem é a juventude. Não dizia isso diretamente para mim, dizia para minha mãe que ficava puta da vida, ia nos bolsos dele, e claro, depois me entregava. Epa, será que finalmente falou alguma coisa?
Viro o rosto e o contemplo. Nunca o tinha visto como agora, nesta virada de relance. O rosto tem um sabor de leite, como se a noite o bebesse. Estranho, está tudo estranho hoje. Hoje eu até consigo acreditar que ele gosta de mim, sim. À sua maneira gosta.
- O que você falou? – pergunto.
Ele balança a cabeça significativamente, mais uma vez.
Entendi, sei que vai querer a cerveja. Venço a minha timidez de 23 anos e tenho o impulso de lhe dar um afago para trás, no braço magro. Ele sorri. Eu percebo que isso é tudo que eu quero e que não precisa palavras. Sinto-me feliz e não quero mais olhar para trás.
Voltamos às Rosas. Sempre dando voltas, descubro que percorri o centro da cidade e ele não reagiu, penso que está indiferente mesmo, continua concedendo a mim a iniciativa da viagem. A viagem, pois, é minha, ele apenas o meu acompanhante. Eu desacelero. Talvez esteja pensando que eu quero me exibir, mostrar que também conheço alguma coisa dos seus ambiente sórdidos, talvez pense que eu estou tentando agradá-lo e mostrar que apesar de tudo que faz para minha mãe, eu estou do lado dele para o que der e vier. E não é nem uma coisa nem outra.
Bebemos. Em cima da moto mesmo. Eu ouço o barulho da latinha, espatifando-se no chão quando passamos na viela. Ele, como de hábito, tomou de um gole. Avançamos novamente na noite e no vento. Tomo mais uma das latinhas que trouxemos, coloco uma em sua mão e pouco depois ouço-a esparramar-se no chão, enquanto eu prefiro sorvê-la lentamente. Não reclama por eu estar bebendo na direção de uma moto, jamais reclamaria disso. Tenho vontade de iniciar uma conversa, chamá-lo de alguma coisa mais íntima como outros filhos fazem, tipo chamá-lo de velho ou coisa parecida, mas vejo que é inútil. Velho? Isso seria horrendo para ele, que sempre persegue a juventude como se fosse algo que nunca teve. Mexe-se lá atrás. Será que vai dizer, finalmente, pare?
- E aí pai?
Apenas grunhe mais uma vez. Está bêbado. Já havia bebido quando o convidei e isso, certamente, facilitou para que aceitasse o convite. Agora deve estar meio tonto, quase dormindo. Não volto para olhá-lo, mas tenho a sensação de fragilidade, de que sua cabeça poderia tombar após uma curva, será que já está na hora de voltar?
Recuso-me a perguntar-lhe, pode me dar uma resposta das boas, mas sei que mesmo as longas viagens tem um fim. Poderia aproveitar esse seu instante de fraqueza para solidarizar-me com ele num gesto mas deixo isso para o vento que deve ser melhor do que eu para isso, justamente hoje que tá que tá, agitado como nunca. Eu também deveria estar bêbado como ele, como o vento parece estar, mas sinto-me duro, estável, composto. Descubro-me pela primeira vez na vida imperturbável e com tanta força que consigo imaginar esta longa viagem rígida como uma haste, a quem poderia empunhar como um guerreiro, Por que devo encerrá-la? Por que todas as estradas são longas mas um dia têm um fim? E aquela aglomeração adiante, por que se posta diante de minha viagem como um quebra-molas no meio do caminho?
Acelero, tenho impulsos de acelerar cada vez mais para me livrar desse bolo de gente que se avoluma aos poucos, gostaria de aumentar cada vez mais a velocidade para poder flutuar sobre eles, em minha moto, como um avião. Viro-me para trás, instintivamente, e o vejo. Está meio sonolento mas firme, também parece não gostar dessa intromissão. Poderia forçar a barra, ameaçar atravessá-los, vê-los abrir caminho para nossa travessia e, logo após, escapar. Porém, vejo que estão cada vez mais próximos. Meu Deus, o que faço?
Ora, porque está no meio desse povo gente conhecida, rostos que estou acostumado a ver mas que não distingo perfeitamente? Por que seus rostos têm uma expressão tão aflita e seus gestos me apontando parecem roupas rasgadas de corpos que não se vêm? O que fazem aqui, o que vieram fazer no meio de minha viagem? “Mãe, mande-os embora! – tenho vontade de gritar agora que a distingo, surgindo entre eles. Enquanto travo a moto com fúria, fazendo questão de evitar a expressão de espanto dos rostos mais próximos não posso evitar de encarar seu rosto aflito quando grita: “Você me mata!”
Tenho pena, muita pena dela, que se inclina e quase tomba chorando ao lado de alguém. Agora reconheço minha tia na mulher que segura seu ombro e, gesticulando, empina-me o dedo acusador. Afronto a multidão. Desamarro lentamente as cordas que o seguravam rente ao meu corpo. Minha mãe grita e chora, outras vozes histéricas tentam lhe fazer eco. Carrego-o com cuidado, pois dá a impressão de que está dormindo. Grito de verdade pela primeira vez como desejei durante toda a viagem: “Mãe, aqui está o meu pai.” Ela responde, gritando também: “Meu Deus!”e chora.
Acho que entendeu. Eu dela me aproximo carregando-o como se carregasse o embrulho frágil de toda a minha existência ainda possível e digo: “Mãe, desculpe-me se puder, eu só queria fazer com ele sua última viagem. A última!”
José Eweton Neto é um dos grandes prosadores da literatura maranhense contemporânea.
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