Uma cartografia das inquietações
Ronaldo Cagiano
Diário da Manhã (Goiânia, domingo, 7 de
outubro de 2012)
No cenário da literatura brasileira contemporânea,
tão povoada de obviedades e portentos de laboratório, é comum o incensamento de
mediocridades, o altar para a subliteratura e o espaço generoso que se dá mais
à vida literária do que à própria literatura. Desse modo, os cadernos de
cultura da mídia hegemônica e monopolista fazem silêncio, ou negligenciam criminosamente
a existência de bons poetas e ficcionistas espalhados pelo Brasil. Há um
sem-número deles que não frequentam os suplementos dos grandes jornais ou
revistas do gênero por culpa e obra da absoluta incapacidade da crítica com
assento nesses veículos de perceber o óbvio, de dar espaço e valor ao que realmente
tem.
Entre esses autores – que em nada devem aos escritores
homologados pela imprensa do eixo Rio-São Paulo – encontra-se Ronaldo Costa
Fernandes, maranhense radicado em Brasília, autor de vasta e premiada obra,
cuja bibliografia, se vivesse em qualquer país da Europa, teria o devido
reconhecimento e justiça, pela alta voltagem estética e pela universalidade de
sua temática.
Em seus dois últimos livros, o romance Um homem é muito pouco (Ed. Nankim, SP,
2010, 488 pgs, R$ 50) e o volume de poemas Memória dos porcos (Ed. 7 Letras, Rio,
2012, 110 pgs.Capa dura, R$ 36), Fernandes consolida o leitmotiv de suas inquietações
criativas. Nessas duas obras singulares, está presente o que caracteriza seu
projeto literário: uma profunda imersão na condição humana, tratada na prosa e
na poesia com uma dimensão existencial, em que a passagem do tempo, os
mistérios da vida e da morte, a condição social e política do homem num etiquetado
e sem rumo, a memória histórica e política e o desencanto com as utopias são
tratados com densidade trágica, mas poética.
Caudaloso, instigante e desafiador, Um homem é muito pouco é composto de
quatro histórias, cenários e protagonistas distintos, mas que guardam entre si
um liame e uma tensão, em cujo desenrolar se expõe a desumanidade da ditadura
militar e todas as experiências dilacerantes – que reduzem o homem a quase nada
– e o que o tormentoso chumbo da opressão, com seus fantasmas e dilemas, pode
provocar no íntimo e na sociedade. A figura do capitão Vaz, réu incólume assombrando
como um escroque impune à la Brilhante
Ustra, é emblemática. Personagem que carrega o cheiro de enxofre, os miasmas
dos porões e o pânico dos algozes, desencadeia aquele sentimento de impotência,
aquela condição inerme de tantos ao enfrentar um sistema que nos aparta e nos
desvincula do próprio status humano. A existência escandalizada e banalizada
pelo Mal. O homem como impossibilidade de ser, de ter, de pensar, de existir
nesse espectro de perseguições e choques. O autor penetrou essa dor coletiva
para traçar um painel sincero, pungente e humano, porém sem uma inflexão
ideológica ou partidária desse período negro em nossa história, de um Rio de
Janeiro que reverberava a espantosa realidade que vivíamos, o que nos remete
aos grandes romances de geração.
Em A memória
dos porcos, Ronaldo prossegue seu inventário do desassossego, a contabilidade
das perdas e um olhar agudo sobre nossa precariedade, na linha de sua
permanente inquietação metafísica e existencial. Entre a erudição e a leveza, a
linguagem concentra enorme poder metafórico e uma dose de causticidade e ironia
para tratar de temas tão antigos, mas renovados pelo seu sopro humanista, pelo
seu bisturi psicológico, com que faz a catarse de nossas perplexidades e
angústias. É o homem, que nunca é pouco, o centro e sua reflexão poética. É a
vida, com suas pocilgas e seu pomar de bactérias, às vezes tão solapada pela
realidade, miserabilizada pelo caos e fragilizada pelos fetiches da sociedade
de consumo, que merece sua investigação. O ser e o tempo, objetos de sua
contundência poética, expostos a uma necessária dissecção. Esse livro,
vertiginoso e verdadeiro, memorializa nossas mais arraigadas questões,
entranha-se no ambiente onde hibernam nossas dúvidas para, sob a pele das
palavras, nos ajudar a remover os palimpsestos que ainda escondem o grito
deflagrador de toda a esperança. A leitura de A memória dos porcos nos parece indicar que em Ronaldo Costa
Fernandes há aquela mesma necessidade vital e imperiosa, aquela sede onírica da
busca da palavra redentora, de que nos falou René Chair: “A poesia me roubará a morte.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário