Manuel Vázquez Montalbán |
Morte sob medida
Em época de grandes transformações como a nossa é curioso observar a fixidez no romance policial que, se transgride suas regras, torna-se o romance propriamente dito, como é o caso, por exemplo, entre outros, de Rubem Fonseca. O que intriga é a permanência do “fixo” num tempo de “mudanças”. Montalbán insere comportamentos instigantes no gênero, mas não foge a seus preceitos.
O romance policial pode ser de enigma (Agatha Christie) ou noir (Hammet, Chandler). Manuel Vázquez Montalbán (1939-2003), autor bastante conhecido, em Quarteto (publicado a primeira vez em 1988), encaixa-se no primeiro caso. A virtude do romance policial é seu defeito: tudo gira, previsivelmente, em torno de um crime e sua solução. Quando o leitor se defronta com um livro policial, ele, de antemão, sabe que irá encontrar alguns procedimentos básicos. O leitor médio culto do romance não-policial desconhece os comportamentos do narrador e trama. A diferença, entre inúmeras outras, está em que a literatura policial não apenas trabalha com clichês (a mais ordinária) como também (no caso da mais sofisticada) opera com expectativas apriorísticas.
O título do livro se refere ao quarteto que é formado por Carlota, a vítima, pelo marido dela, Luis, e por outro casal: Pepa, vulgar e exuberante, e seu marido Modolell, amante de Carlota. O quarteto, que na verdade é um quinteto, contando com o narrador, vive num mundo sofisticado, rico e culto. Com a morte de Carlota, comparada a Ofélia do quadro de Everett Millais (1852), em virtude do afogamento e pela beleza, o grupo se desfaz. E, como soe acontecer nos romances policiais, todos são suspeitos. Esta suspeição do romance policial é que incita a curiosidade: o leitor invade um mundo de perguntas e incriminações, mundo este que ele pode inadvertidamente também um dia vir a pertencer ou, ao ler o romance, nele penetrar e ver-se também “suspeito”. Neste caso, o leitor é suspeito em alto grau: quer romper seu cotidiano, participar de uma trama intricada, vivenciar um mundo que não é o seu cotidiano.
Montalbán é um escritor que detém todos os instrumentos para construir um relato não-policial. Sua pena é delicada, análise fina e singular dos personagens. Sua erudição compõe o narrador de forma natural e verossímil, nunca introduzindo uma intromissão desabrida e despropositada do narrador apenas para mostrar-se apto a produzir conhecimento distanciado do tema e da trama da história. Geralmente sua erudição serve para situar o personagem, fazê-lo atuar e, principalmente, para a análise que o narrador faz das situações. Não há, no romance policial, como fugir do lugar-comum que, de forma demolidora, reduz a construção refinada. Há um morto, seu crime e sua investigação, feita sempre de modo conservador e redundante. Chega a hora de o detetive, por exemplo, perguntar: “– O que o senhor estava fazendo na tarde de 16 de julho, entre as cinco da tarde e nove da noite?” O espectro se limita e o que era especular e grandioso enquadra-se no modelo mais ordinário. O curioso é que o leitor espera esta pergunta ou outra do gênero para ingressar num universo que ele conhece e nele sentir-se cômodo. É a segurança do conhecido, mais do que propriamente a sutileza da escrita, que o leitor reconditamente busca. O estilo requintado de Montalbán, de certa forma, contraria o princípio estilístico básico do romance policial que é ser claro, nítido, sem que o leitor perceba o estilo. E, se Montalbán segue o caminho dos romances policiais mais avançados, este procedimento não o exclui do método clássico.
Até o romantismo, os gêneros eram fixos e a norma do fazer literário (da boa literatura) correspondia a não infringir as normas estabelecidas. Ora, o romance policial, como literatura de massa, carrega consigo um conceito deslocado no tempo. O romance policial é bom para o leitor quando não rompe justamente com o gênero, seu modelo e suas normas. Uma delas, da qual Montalbán não escapa, é a máxima de George Butor sobre o romance de enigma: “a narrativa policial superpõe duas séries temporais: os dias do inquérito, que começam com o crime, e os dias do drama que levam a ele”. Na segunda fase, lembra Todorov, os personagens não agem, descobrem.
Cabe agora o comentário sobre esta edição. É ela patrocinada pelo Ministério da Cultura da Espanha. Penso que um órgão público deveria subsidiar autores de menor expressão de vendas e maior inventividade. E não um autor de forte apelo comercial, traduzido em vários idiomas. De qualquer forma, os leitores de Montalbán, autor de vasta bibliografia e traduzido em vários idiomas, não se sentem desapontados com este Quarteto de cinco pontas.
Para terminar, lembremos que Quarteto repete a fórmula que nomeio “construção por omissão” do romance de Agatha Christie que à sua época foi “inovador”: O assassinato de Roger Ackroyd. É uma boa leitura e, por não fugir ao gênero, certamente agradará àqueles que o lerão. (RCF)
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