Sobreveio o
desastre, nenhum pé subiu mais os degraus. A brancura do mármore, a superfície
porosa, os detalhes dos encaixes em cobre, o corrimão de madeira escura.
Meu método: manhã, limpar de baixo para
cima; tarde, descer os degraus, um por um, como quem rola um terço.
Diariamente mais de quatro mil pessoas.
Quatro mil pessoas! Sem falar dos empregados, dos juízes, dos desembargadores,
das autoridades, do guarda-livros, dos chefes de seção, do pessoal da
biblioteca, dos faxineiros, dos bombeiros, dos guardas de segurança. Oh, como
podia esquecer, a segurança pessoal dos juízes, desembargadores, autoridades,
chefes e chefes, eram tantos chefes.
Esse silêncio. A ordem superior que mandou
desativar o prédio. De dia, se podia observar a escada com toda clareza e
exuberância. Quando começava a anoitecer, subia até o depósito. Lá estavam as
velas. Buscava-as, trazia até a escada e a iluminava.
Um homem tem que ter disciplina. Se
ninguém olha para o seu trabalho, tudo vai por água abaixo. Organizei minha
hierarquia. João Pândega era um sujeito que tinha de manter sob rédea curta. Os
outros dois, eu respeitava. Um deles, Anacleto, mal falava comigo. Já me
acostumara ao mutismo de Anacleto.
Não era eu quem limpava a mesa de
Anacleto, do desembargador Anacleto. Os autos se avolumavam, se espalhavam pela
mesa. Estava sempre de toga, o desembargador. Era um homem imponente. A gola
branca, em contraste com o rosto vermelho, lhe dava um ar de severidade
imperial. Não cuidava dos bustos. Aliás, desconhecia quem cuidava dos bustos.
Os bustos estavam secos, rachados,
outros tinham limo. Os que apanhavam sol sofriam de secura, os que estavam na
sombra eram perseguidos pela umidade.
Minhas escadas tinham sombra e luz.
O desembargador Anacleto não podia
reclamar de mim. Se não limpava sua sala ou sua mesa – a sala do desembargador
já estava completamente tomada de ratos, os processos sofriam a passagem do
tempo e também eram vítimas dos roedores –, ao menos cuidava do próprio
desembargador.
De ano em ano, costurava a barriga para
que não saísse a palha e pintava o rosto de vermelho. O mesmo fazia, sem
diferença de hierarquia, com o pobre do João Pândega. O homem me escutava falar
havia mais de trinta anos e nunca reclamava, fazia cara de desagrado ou emitia
um som qualquer que pudesse ser interpretado como fastio.
Vão demolir o prédio. Há mais de cinco
meses cumpro o que considero a minha mais importante missão: cortar as partes
da escada e reconstruí-la na fazenda.
A escada, diz o documento, deverá ser
mantida intacta. Esta foi a sua função. Logo, deverá devolvê-la do mesmo modo
que a encontrou trinta anos atrás. Leio, fico perturbado. É uma intimação.
Querem me julgar por não ter cumprido o contrato.
Um juiz de toga exuberante, negro como
um corvo de gola branca, discursou furioso. Não admitia o sumiço da escada. Sem
a escada não se fazia justiça.
–
O senhor entende do que estou falando? – me perguntou. – Sem a escada não se
faz justiça. O senhor não tinha compromisso com nada neste mundo além da
Justiça. A Justiça!
E cada vez que pronunciava a palavra
Justiça parecia que ia ter um ataque apoplético. O rosto sanguíneo e leitoso se
avermelhava, as veias do pescoço inchavam, as mãos tremiam, os olhos reviravam.
(do livro Manual de Tortura. Brasília, Esquina da Palavra, 2007)
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