(trecho de ensaio do livro A cidade na literatura e outros ensaios. São Luís, Academia Maranhense de Letras, 2016)
Em Père Goriot, Balzac apresenta uma Paris da pensão Vauquer, ninho
pequeno-burguês, frequentemente visto como uma metáfora ou microcosmo de Paris
ou os salões e casas fidalgas por onde transita o arrivismo de Eugène
Rastignac. Veremos como aparece a cidade dentro desta narrativa de Balzac
especificamente para demonstrar uma tese: a cidade não é a cidade real, mas as
relações que em determinado espaço e tempo são mantidas, dentro do espectro
ficcional e que revelam menos a cidade que a cidade ideal do romancista, ou a
cidade dentro do romance, que não é
verdadeiramente uma cidade eterna, fixa no tempo, ou uma cidade de cimento e
pavimentos, representável.
Ora, Paris do século
XIX não se restringe a uma pensão nem aos salões e teatros de ópera que se
opõem como cenários para compor a vida dos personagens do Pai Goriot. Desde o personagem que dá título ao livro, sinônimo de
devoção paterna e símbolo de repúdio das classes nobres pela origem mercantil
dos burgueses em ascensão, até Rastignac, jovem provinciano disposto a vencer a
todo custo para ascender a um mundo de luxo, riqueza, aparência e títulos,
embora habite a pobre pensão onde o autor primordialmente arma o palco para o
seu drama. A Paris real é muito mais complexa, densa, diversificada. A Paris
real é composta por números, estatísticas, ruas, avenidas, prédios, labores
múltiplos na indústria, no comércio, nos serviços. É uma Paris operosa,
burocrática, fabril, pública ou privada, uma Paris muito mais ampla que o
reduzido espaço que o autor de Pai Goriot
recorta e nomeia Paris.
Em seu livro Seis passeios pelos bosques da ficção (“O
estranho caso da rue Servandoni”. In: Seis
passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1997), Umberto
Eco comenta o erro urbanístico de
Alexandre Dumas, em Os três mosqueteiros.
Dumas faz Aramis andar sonhador e apaixonado, acompanhado das estrelas, pela
rua Servadoni que não existia ainda na época em que se passa o romance.
“Infelizmente”, escreve Eco, “nosso leitor empírico por certo ficará comovido
com a menção da rue Servandoni porque Roland Barthes morou lá; contudo Aramis não
poderia ter se comovido, porque a ação transcorre em 1625 e o arquiteto
florentino Giovanni Niccolò Servandoni nasceu em 1695, concebeu a fachada da
igreja de Saint-Suplice em 1733 e se tornou nome de rua só em 1806.”[1]
Eco transformou-se num “leitor paranóico” e, com mapas do século XVII,
percorreu a Paris de Os três mosqueteiros. Ele afirma que estas
observações são irrelevantes para o leitor-modelo de Dumas – e eu ainda
acrescentaria que são irrelevantes para qualquer leitor. É onde tentarei
chegar: as cidades do romance são cidades idealizadas, pouco importa se a rua
Servadoni existia com este nome ou não, ou, ainda, Aramis atravessar uma rua
que, no tempo do romance, era interrompida, e só mais tarde, já no tempo do
autor, estará aberta.
Eco lembra os romances
chamados ucrônicos, “que se passam num tempo histórico totalmente maluco, em
que Júlio César duela com Napoleão e Euclides consegue por fim demonstrar o
teorema de Fermat.”[2]
Ainda afirma que o leitor-modelo de Os
três mosqueteiros não é o leitor-modelo de Finnegans Wake, de James Joyce, que requer uma série de dados,
informações e cultura que os diferencia. Eco diz que o leitor-modelo de Dumas
pouco se importaria com essa informação truncada, pois não tem informação para
tanto. Mas logo afirma que o processo ficcional, seja de Dumas seja de Joyce,
vai requerer do leitor um comportamento comum, onde o conhecimento ( Eco chama
de “enciclopédia” do leitor ) é secundário perto de um procedimento de
apreensão da narrativa.
“O
problema com o mundo real é que, desde o começo dos tempos, os seres humanos
vêm se perguntando se há uma mensagem e, em havendo, se essa mensagem faz
sentido. Com os universos ficcionais sabemos sem dúvida que têm uma mensagem e
que uma entidade autoral está por trás deles como criador e dentro deles como
um conjunto de instruções de leitura.”[3]
A
cidade revela-se através de suas relações entre pares, no intercurso social, no
recorte não urbanístico, mas no desenho criado no contato entre personagens de
uma mesma classe social – Rastignac e pai Goriot – ou entre classes diversas –
Rastignac e a baronesa de Nucingen, filha de Goriot. As filhas de Goriot veem
às escondidas o pai, proibidas pelos maridos de encontrar o velho burguês e
comerciante. Os maridos, nobres, porém falidos, têm vergonha da origem das
esposas, ainda que usufruam o dinheiro comerciante do pai Goriot. Rastignac se
apaixona pela filha de Goriot, o que cria cumplicidade entre eles na velha
pensão Vauquer. O traço urbanístico – prédios, construções, avenidas, etc. –
não conformam os personagens, só servem para pontuar a rua de Nova de Santa
Genoveva[4] (pensão
Vauquer) como espaço da classe média e o faubourg
Saint Michel, os Italiens ou a Ópera
como expressão da riqueza. O traçado urbanístico não serve aqui para se opor,
ajudar, favorecer, antagonizar ou oprimir os personagens. A Paris de Pai Goriot não existe mais, embora
exista ainda a Paris com o mesmo traçado urbanístico. Logo, a cidade que
desapareceu é a cidade do intercurso social: a nobreza, as relações entre uma
classe social hierarquizada e suas relações de poder, discriminação e
decadência. Ora, logo temos duas Paris: uma, apenas cenário, e outra, que
acolhe os protagonistas onde se passa a ação do romance.
[1]
ECO ( p. 110 )
[2]
Idem, ibidem, p. 114
[3]
Idem, ibidem, p. 122.
[4] “Nenhum bairro de Paris é mais horrível nem mais
desconhecido. A rua Nova de Santa Genoveva é como uma moldura de bronze, a
única que convém a esta narrativa, para a qual a inteligência nunca estaria
preparada suficientemente por cores escuras e ideias graves, assim como, de
degrau em degrau, o dia vai-se apagando e a voz do guia diminuindo, enquanto o
viajante desce às Catabumbas. Quem decidirá o que é mais horrível de se ver,
corações secos ou crânios vazios? [ ... ] Entra-se nessa alameda por uma
portinhola, encimada por uma tabuleta onde se lê: CASA VAUQUER, e embaixo: Pensão
burguesa para os dois sexos e outros.” (BALZAC, Honoré. Pai Goriot. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000).
(continua)
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