quinta-feira, 30 de novembro de 2017

A invenção da cidade pela literatura 2, RCF








(trecho de ensaio do livro A cidade na literatura e outros ensaios. São Luís, Academia Maranhense de Letras, 2016) 



Todas as duas permanecem no tempo, de outro ponto de vista: a de pedra, pela razão urbanística exposta acima; a das relações sociais porque as relações de classe podem ter desaparecido, mas permanecem os sentimentos (o arrivismo e ao mesmo tempo pureza de Rastignac, a abnegação paterna de Goriot) que faz o romance eterno, que “atualizam” a trama em razão de que o intercurso humano, as fragilidades, defeitos, os dramas da personalidade se configuram como um estado permanente do homem.

Balzac, comentando a pensão Vauquer, o encontro de pessoas díspares, mas da mesma condição social, reunidas num mesmo espaço, diz que “uma tal reunião devia oferecer, e oferecia, em miniatura, os elementos de uma sociedade completa”.[1] Temos aí o processo – que não acreditamos seja real, mas que o autor julga pertinente – de miniaturização da cidade. A cidade, claro, entendida agora como intercurso social. Esta ideia de que pode comprimir e representar o todo por intermédio de um recorte não corresponde à realidade empírica. Senão, vejamos. Estão alijados da miniaturização os operários, as classes baixas, os políticos, os burocratas, etc. A miniatura representa apenas um feixe restrito de relações e não nos dá a cidade – como quer acreditar o autor e vários críticos – em sua totalidade. A cidade, repetimos, se oferece justamente nas relações humanas, mas não a cidade em sua completude, fenômeno que nenhum autor pode alcançar, embora Balzac intente o projeto. E de maneira tão clara que o título que dá a sua coleção de romance é nada mais nada menos do que uma pretensão globalizante e totalizadora: a comédia humana.[2]

Contraditoriamente, Balzac deixa escapar que sua ideia totalizante não pode ter muita viabilidade. Deixa-se trair por trechos como este:


            “A bela Paris ignora essas figuras pálidas de sofrimentos morais ou físicos. Mas Paris é um verdadeiro oceano. Sondai-o, jamais conhecereis suas profundidades. Percorrei-o, descrevei-o! Por mais cuidados que tenhais em percorrê-lo, em descrevê-lo; por mais numerosos que sejam os exploradores desse mar, haverá sempre um lugar virgem, um antro desconhecido, flores, pérolas, monstros, algo inaudito, esquecido pelos mergulhadores literários. A Casa Vauquer é uma dessas monstruosidades curiosas.”[3]


            Ora, o que acontece aqui: o autor reconhece a grandiosidade da cidade, identifica-a como maior que seu discurso, que o romance apenas pode apreender um segmento – ou fragmento – da cidade. A imagem de um oceano é a imagem de um narrador derrotado pela grandeza do seu assunto: antes percebe que seu narrador não pode conhecer a vastidão daquilo que, dentro do código das imagens, é a imagem de inconsciente, vastidão, lugares inauditos e pouco alcançados pela luz exterior. Para ele, o narrador seria então “um mergulhador literário” que não poderia dar conta de um universo tão vasto. Embora, aqui e ali, defronte-se com uma “monstruosidade curiosa”. É interessante que Balzac se refira à Casa Vauquer como flor ou pérola, dentro da enumeração das “coisas” do mar, vasto oceano: “lugar virgem, antro desconhecido, flor, pérola, monstro, algo inaudito”. A Casa Vauquer é o lado escuro deste oceano, é a monstruosidade da sociedade parisiense, longe da “bela Paris”.

            É Rastignac quem vai fazer a ligação das duas Paris: a da pensão Vauquer e da elegância das carruagens desfilando no Champs-Elysées. Elo entre dois fragmentos de Paris, Rastignac será ainda mais conducto na medida em que, pela juventude e ambição, circula mais pelas duas Paris. O velho Goriot também pertence a dois mundos, embora tenha sido abastardado no mundo das filhas, no universo nobre das filhas. Balzac traça as características de comportamento de Rastignac, ainda como estudante que procura entender como uma certa Paris, a Paris nobre, funciona:


            “Um estudante apaixona-se então por futilidades que lhe parecem grandiosas [ ... ]. Ele arruma a gravata e faz pose para a mulher das primeiras galerias da Opéra-Comique. Nessas iniciações sucessivas, ele se despoja de seu alburno, aumenta o horizonte de sua vida e acaba por conceder a superposição das camadas humanas que constituem a sociedade. Começando por admirar as carruagens que desfilam nos Champs-Elysées num belo dia de sol, logo passa a invejá-las...”[4]


            Rastignac aproveita-se da renda rural e curta da família que faz sacrifícios para que se mantenha em Paris. Em sua ânsia de ascensão, não tem dó de usar economias domésticas para seus luxos. Interessante como o narrador, numa linguagem ainda hoje usada, refere-se à sociedade como o agrupamento humano das camadas superiores. O narrador balzaqueano vai fazer uma análise dessa sociedade, através da visão deslumbrada de um provinciano, embora, o próprio narrador seja cruel e pouco simpático à nobreza parisiense. Outro ponto de vista, desta vez dado por outro personagem, cínico e niilista, o Vautrin, aparecerá para carregar nas tintas mais amplas de um convívio humano degradado pela ambição, luta pelo poder e para alcançar um lugar na classe dominante. Só que o narrador cede a palavra a Vautrin, quase como se eximindo de uma crítica mais perversa, crua e impiedosa, deixando para sua onisciência as considerações via Rastignac – logo o narrador vê Paris apoiando-se em Rastignac, o grande elemento “urbano”, no sentido de costurar relações e revelar procedimentos de convívio. Mesmo considerando o personagem, ao princípio, inseguro e provinciano, é a partir dele que o narrador, mais extensamente, opõe as duas cidades. “Você é ainda muito jovem para conhecer bem Paris”, diz Vautrin para Rastignac. Outro narrador em outro romance poderia dizer “Você é ainda muito jovem para conhecer a vida”. Neste sentido Paris e Vida se acomodam. Conhecer o mecanismo de poder, sedução e ocupação de espaço na sociedade representa ingressar nos procedimentos de “urbanidade”, representa, para Vautrin, confundir a própria cidade como representação da vida.




[1] Idem, p.21.
[2] Poderíamos até mesmo afirmar que Balzac vai mais além: não quer apenas a totalidade de Paris, nem mesmo da França, mas da espécie humana. Ora, essa pretensão é lícita e faz parte do repertório da época em que ainda se podia acreditar numa apreensão totalizadora da realidade. O problema dessa idealidade em Balzac, visto da maneira como constrói não somente Pai Goriot, mas o conjunto de sua obra, pode ser discutido em outro espaço temático. De qualquer maneira, o que gostaríamos de reafirmar é o caráter singular (valeria também incluir neste singular o processo de singularização, de Slovski), parcial, menor, recortado e, ainda mais, enganoso, no sentido que entende um recorte como uma totalidade.
[3] Idem, p. 17-18.
[4] Idem, p. 20.

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