Costumamos imaginar dois tipos de avaliação de um autor experiente quanto a seu livro de estreia: endosso ou rejeição. Mas, entre os dois extremos, a gama de reações parece infindável, como veremos a seguir, acompanhando as estratégias de afamados escritores brasileiros do século XX frente a suas primeiras obras, no campo da poesia.
Na ponta do endosso, um nome que avulta é o de Manuel Bandeira. Lançou "A Cinza das Horas" em 1917 (contava, então, com 31 anos) e até o fim da vida não cessou de reeditar o volume, ainda que ele próprio já houvesse substituído a dicção parnaso-simbolista da obra inicial pela linguagem modernista, soberana a partir de "Libertinagem" (1930).
Na ponta do "não" radical, Cecília Meireles. Publicou aos 18 anos (em 1919) o opúsculo "Espectros", de fatura neoparnasiana. Não contente em jamais reeditá-lo, chegou ao ponto de sequer permitir que o livro fosse arrolado em sua bibliografia. Em decorrência, "Espectros" tornou-se um dos mais fantasmagóricos mistérios das letras brasileiras: durante mais de 80 anos se chegou, até mesmo, a conjecturar que não restara sequer um exemplar para contar a (pré-)história ceciliana. Finalmente localizado no início do século XXI, foi incorporado à "Poesia Completa" da escritora, na edição comemorativa de seu centenário de nascimento.
Guimarães Rosa tampouco pensou em endossar suas primícias poéticas - que representaram, aliás, no conjunto do autor, uma solitária incursão ao gênero. Bem antes de consagrar-se como notável ficcionista, a partir de "Sagarana" (1946), Rosa obtivera com "Magma", em 1936, o primeiro lugar em concurso de poesia promovido pela Academia Brasileira de Letras. Somente em 1997, 30 anos após a morte do escritor, foi publicado o volume, que em quase nada lhe prenuncia o talento.
Vinicius de Moraes renegou na íntegra "O Caminho para a Distância" (1933), fazendo constar, num adendo a bibliografias posteriores, que a edição fora "recolhida pelo autor". Publicada quando Vinicius contava 20 anos, tributária do influxo da poesia de Augusto Frederico Schmidt e do pensamento católico, a obra estampa uma visão atormentada e culposa do desejo, bem diversa daquela que o poeta em breve iria abraçar.
Já no extenso arco das estreias rejeitadas, "ma non troppo", figura "Há uma Gota de Sangue em Cada Poema" (1917), de Mário de Andrade, sob pseudônimo de Mário Sobral. O poeta afirmava que escritor algum deveria publicar antes dos 25, mas, no fim (ou no início) das contas, acabou desprezando a regra que ele mesmo criara, pois aos 24 anos editou a plaquete. É verdade que excluiu o volume de suas "Poesias" (1941), mas o preservou por inteiro em "Obra Imatura" - no caso, o adjetivo "imatura" parece sinalizar quase um pedido prévio de complacência ao distinto público.
Cassiano Ricardo opera em sentido diverso: aparentou preservar o pioneiro "Dentro da Noite" (1915), publicado aos 20 anos, nas "Poesias Completas" de 1957, mas o descaracterizou de tal modo que, dos 43 textos originais, apenas 5 reapareceram - ainda assim, com várias (não explicitadas) alterações. Como se não bastasse, enxertou, em 1957, dois poemas inexistentes na versão de 1915, dando a entender que houvessem desde sempre integrado o primeiro livro.
Nesse particular, Cassiano foi o mais camaleônico de nossos modernistas, sem pejo de reinventar continuamente o próprio passado, e considerando-se desobrigado de dar notícia das transformações (muitas vezes radicais) que efetuava em obras pregressas, tornando-as a posteriori mais "modernas" do que efetivamente haviam sido. Assim, um poema discursivo, originalmente em 50 versos, intitulado, em 1947, "A Inútil Serenata", ressurge em 1957, renomeado, sem aviso prévio, de "Serenata Sintética", e reduzido à concisão exemplar de seis escassos versos: "Lua/ morta/ rua/ torta/ tua/ porta".
Na esteira de Cassiano, outro poeta de São Paulo, Mário Chamie, também timbrava pela radical e subterrânea reescrita do passado. Chamie, aliás, foi bastante próximo de Cassiano Ricardo, a cuja obra dedicou minucioso estudo. A manutenção do título é o único ponto comum entre o "Espaço Inaugural" de 1955 (quando Mário tinha 22 anos) e o de 1977 (incluído em "Objeto Selvagem"). A versão de 1977 suprime na íntegra todos os poemas originais, substituindo-os por peças mais afins da estética do movimento de vanguarda Práxis, lançado e capitaneado por Chamie no início da década de 1960.
Com Murilo Mendes ocorreu fenômeno curioso: não renegou o primeiro e sim o segundo livro, "História do Brasil" (1932), por julgá-lo limitado demais ao compromisso para com o filão de poesia satírica e humorística do modernismo de 22. Na "Advertência" a suas "Poesias" (1959), assim justificou a eliminação dessa obra e o grande número de alterações impostas à versão original de outros livros: "Para esta edição revi inteiramente todos os textos, tendo também suprimido vários poemas que me pareceram supérfluos ou repetidos. Procurei obter um texto mais apurado, de acordo com a minha atual concepção da arte literária. Não sou meu sobrevivente, e sim meu contemporâneo". Agiu, portanto, conforme outros agiram, no sentido de uma modernização estilística, tendo, porém, o zelo de tornar pública a intervenção renovadora.
João Cabral de Melo Neto oscilou bastante nos procedimentos de inserção dos poemas de "Pedra do Sono" no conjunto de sua obra. O autor, que contava 22 anos quando o livro veio a lume (1942), sempre o considerou o mais frágil de sua produção, pela ostensiva presença de um veio surrealista, em pouco tempo eliminado (e execrado) pelo poeta. Ainda assim, os "Poemas Reunidos", de 1954, abrigam 24 dos 29 textos primitivos, destituídos dos respectivos títulos, e identificados em sequência de algarismos romanos. As "Poesias Completas", de 1968, reduziram a 20 poemas o espólio do livro, devolvendo-lhes os nomes e alocando-os no fim do volume. A "Obra Completa", de 1994, derradeira manifestação do autor sobre a questão, reconstituiu a integralidade de "Pedra do Sono".
Mais recentemente, Ferreira Gullar, que antes excluíra "Um pouco acima do Chão" (de 1949) da coletânea "Toda Poesia" (1980), chancelou o retorno da obra, desde que circunscrita ao "Apêndice", à sua "Poesia Completa, Teatro e Prosa" (2008). Os versos adolescentes, publicados na São Luís natal, vazavam-se em tom celebratório eivado de inflexões neorromânticas, numa atitude bastante diversa do complexo e filigranado trabalho de linguagem que Gullar desenvolveria, cinco anos depois, na forte poesia de "A Luta Corporal".
Se muitos poetas abandonaram o primeiro livro, houve um que jamais conseguiu dele sair: Raul Bopp. Com efeito, mesmo que tenha publicado alguns (poucos) títulos poéticos posteriores, Bopp persistiu inelutavelmente atrelado a "Cobra Norato", de 1928, de que passou a fornecer sucessivas edições com retoques, nem sempre felizes. Na contramão da maioria dos escritores, instalou-se para sempre no corpo de sua (c)obra inaugural.
Como a regra, porém, é o repúdio ou a restrição, em menor ou maior intensidade, ao "livro de estreia", poderíamos, com algum cinismo, sugerir aos jovens poetas que iniciem a carreira pelo segundo livro. Mas, se nos lembrarmos do exemplo de Murilo Mendes, o mais seguro, mesmo, é começá-la pelo terceiro.
Antonio Carlos Secchin é poeta, ensaísta e membro da Academia Brasileira de Letras
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