Fui atravessar a Avenida Rio Branco, um carro me pegou. A última lembrança que tenho era eu estirado no asfalto. Do asfalto à cama, há um intervalo de meses em coma. Nesse ínterim, estava cercado de parentes e amigos. Com o passar do tempo, cada um foi cuidar de seus negócios e, hoje, me encontro vítima de poucas visitas. Minha mulher, mãe de dois filhos meus, mora em Santa Catarina. Vêm, permanecem poucas horas, voltam para casa. Uma tia velha que me trazia doces – gosto principalmente de doces cristalizados – morreu. Só não estou sozinho no mundo porque tenho as vozes.
Não, não são vozes interiores, como as vozes que os
malucos ouvem. Aqui também há malucos. Há malucos em todos os lugares. Minhas
vozes são vozes limpas. E não estão dentro de mim. Elas estão fora, bem fora.
São vozes de mortos.
É
engraçado como a voz de morto pode ser metálica. O que me incomoda é que, de
tanto ouvi-las, já sei o que dirão e, por isso, se tornam monocórdias. Se são
roucas, vivem sempre roucas. Se são finas, repetem sempre as mesmas modulações
agudas.
Não
há muita distração para um cara que está deitado na cama. Olhar o teto,
conversar com as enfermeiras. A higiene do hospital é boa. Sou limpo por
enfermeiros. Prefiro os homens. É que as mulheres têm pudores. Elas podem dizer
que não, que são profissionais e coisa e tal, mas na hora de pegar no pau ou
limpar o cu, fazem com rapidez e violência como se quisessem mostrar que um
órgão genital e um órgão excretor são como as outras partes do corpo.
Se tivesse
visita, o tempo passaria mais rápido. Talvez fosse melhor eu estar na
enfermaria. Lá, teria de conviver com toda espécie de gente. Mas prefiro como
estou. Na enfermaria, eu teria que ouvir um bando de besteira, mazela de todo
tipo – os doentes adoram falar de doença – quando não fosse escutar as mesmas
histórias, porque a grande maioria é velha e a maior doença dos velhos são as
reminiscências.
Fui
advogado de grandes empresas como a Light e a Petrobrás, até abrir meu
escritório e fazer fortuna.
De
início não tive idéia nenhuma, oh, não, tudo começou quando minha mãe morreu e,
sem poder me locomover, não fui ao enterro.
Chamei
os técnicos de som. Me cobraram uma nota. Todos me cobram caro. Todos sabem que
tenho dinheiro. O dinheiro não cura minha doença, mas me dá as vozes. Pago uma
baba pelas vozes. Pensam que não? Tentem fazer o que faço. Guardar as vozes.
Tentem.
Ouço meu padrasto. Morreu. Me preveni.
Não fui pego de surpresa como aconteceu com minha mãe. Tenho a voz do meu
padrasto. Foi a primeira vez que consegui. Minha mãe, oh, minha mãe, naquela
época nem eu estava doente nem pensava ter as vozes. As vozes dos mortos não
deixam de me assombrar. O diálogo entre morto e vivo é diálogo desigual. Posso
falar o que me der na telha. Do outro lado da linha, o morto repete seu texto
decorado como fala de teatro.
Agora mandei gravar minha voz. Mas não
haverá ninguém para me ouvir, discutir banalidades. Não sei para que servirá
minha voz gravada – é como se mandasse congelar minha cabeça para quando
descobrissem a cura da minha doença. Meu destino é o congelamento. Minhas
pernas e braços, de tanto ficar deitado, já foram congelados.
Penso nas cabeças decepadas do grupo de
Lampião. A imagem grotesca e deformada das cabeças sujas, cabelos sebentos,
dentes desarranjados, barbas cheias de areia da caatinga. Meu museu de vozes
também são cabeças decepadas. Uma reunião de vozes sujas, de vozes toscas
embora tecnológicas, um enxoval de delitos, de erros, de cometimentos, de
desusos. Há vozes de tio, de primos, de amigos, de parentes longínquos.
Mas tenho que parar com isso. Outro
dia, contra a minha vontade e desejo de não ver ninguém, de não conviver com
ninguém, veio até o quarto um sujeito que não conheço e me ofereceu, por
quantia ordinária, soma ridícula – não sabem como as vozes são valiosas –, a
voz do pai dele, a voz gravada do pai moribundo, não custaria muito.
–
Sei que o senhor coleciona vozes.
Tenho
que parar com isso, cessar a avidez, minha percepção da fixidez de uma
sonoridade que não existe mais, porque as palavras se perdem, são fabricações
humanas aéreas e vazias. Faz frio e não tenho quem me cubra. Não vou chamar
nenhuma enfermeira. O telefone me comunica não com o mundo dos vivos nem mesmo
com o mundo dos mortos. Agora que mandei gravar minha voz, pego o telefone e me
ouço. Do outro lado da linha, sou como um estranho. Não acredito mais em nada,
nem mesmo nas vozes que não me distraem mais, cada qual falando seu texto, sem
ouvir o que o outro diz, o vazio das vozes, talvez tudo se resuma a isso, talvez
minha voz seja apenas uma gravação unívoca a que chamo vida.
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