quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Os mortos falam ao telefone, conto RCF


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Fui atravessar a Avenida Rio Branco, um carro me pegou. A última lembrança que tenho era eu estirado no asfalto. Do asfalto à cama, há um intervalo de meses em coma. Nesse ínterim, estava cercado de parentes e amigos. Com o passar do tempo, cada um foi cuidar de seus negócios e, hoje, me encontro vítima de poucas visitas. Minha mulher, mãe de dois filhos meus, mora em Santa Catarina. Vêm, permanecem poucas horas, voltam para casa. Uma tia velha que me trazia doces – gosto principalmente de doces cristalizados – morreu. Só não estou sozinho no mundo porque tenho as vozes.

Não, não são vozes interiores, como as vozes que os malucos ouvem. Aqui também há malucos. Há malucos em todos os lugares. Minhas vozes são vozes limpas. E não estão dentro de mim. Elas estão fora, bem fora. São vozes de mortos.

É engraçado como a voz de morto pode ser metálica. O que me incomoda é que, de tanto ouvi-las, já sei o que dirão e, por isso, se tornam monocórdias. Se são roucas, vivem sempre roucas. Se são finas, repetem sempre as mesmas modulações agudas.

Não há muita distração para um cara que está deitado na cama. Olhar o teto, conversar com as enfermeiras. A higiene do hospital é boa. Sou limpo por enfermeiros. Prefiro os homens. É que as mulheres têm pudores. Elas podem dizer que não, que são profissionais e coisa e tal, mas na hora de pegar no pau ou limpar o cu, fazem com rapidez e violência como se quisessem mostrar que um órgão genital e um órgão excretor são como as outras partes do corpo.

 Se tivesse visita, o tempo passaria mais rápido. Talvez fosse melhor eu estar na enfermaria. Lá, teria de conviver com toda espécie de gente. Mas prefiro como estou. Na enfermaria, eu teria que ouvir um bando de besteira, mazela de todo tipo – os doentes adoram falar de doença – quando não fosse escutar as mesmas histórias, porque a grande maioria é velha e a maior doença dos velhos são as reminiscências.

Fui advogado de grandes empresas como a Light e a Petrobrás, até abrir meu escritório e fazer fortuna.

         De início não tive idéia nenhuma, oh, não, tudo começou quando minha mãe morreu e, sem poder me locomover, não fui ao enterro.

         Chamei os técnicos de som. Me cobraram uma nota. Todos me cobram caro. Todos sabem que tenho dinheiro. O dinheiro não cura minha doença, mas me dá as vozes. Pago uma baba pelas vozes. Pensam que não? Tentem fazer o que faço. Guardar as vozes. Tentem.

         Ouço meu padrasto. Morreu. Me preveni. Não fui pego de surpresa como aconteceu com minha mãe. Tenho a voz do meu padrasto. Foi a primeira vez que consegui. Minha mãe, oh, minha mãe, naquela época nem eu estava doente nem pensava ter as vozes. As vozes dos mortos não deixam de me assombrar. O diálogo entre morto e vivo é diálogo desigual. Posso falar o que me der na telha. Do outro lado da linha, o morto repete seu texto decorado como fala de teatro.

         Agora mandei gravar minha voz. Mas não haverá ninguém para me ouvir, discutir banalidades. Não sei para que servirá minha voz gravada – é como se mandasse congelar minha cabeça para quando descobrissem a cura da minha doença. Meu destino é o congelamento. Minhas pernas e braços, de tanto ficar deitado, já foram congelados.

         Penso nas cabeças decepadas do grupo de Lampião. A imagem grotesca e deformada das cabeças sujas, cabelos sebentos, dentes desarranjados, barbas cheias de areia da caatinga. Meu museu de vozes também são cabeças decepadas. Uma reunião de vozes sujas, de vozes toscas embora tecnológicas, um enxoval de delitos, de erros, de cometimentos, de desusos. Há vozes de tio, de primos, de amigos, de parentes longínquos.

         Mas tenho que parar com isso. Outro dia, contra a minha vontade e desejo de não ver ninguém, de não conviver com ninguém, veio até o quarto um sujeito que não conheço e me ofereceu, por quantia ordinária, soma ridícula – não sabem como as vozes são valiosas –, a voz do pai dele, a voz gravada do pai moribundo, não custaria muito.

– Sei que o senhor coleciona vozes.

Tenho que parar com isso, cessar a avidez, minha percepção da fixidez de uma sonoridade que não existe mais, porque as palavras se perdem, são fabricações humanas aéreas e vazias. Faz frio e não tenho quem me cubra. Não vou chamar nenhuma enfermeira. O telefone me comunica não com o mundo dos vivos nem mesmo com o mundo dos mortos. Agora que mandei gravar minha voz, pego o telefone e me ouço. Do outro lado da linha, sou como um estranho. Não acredito mais em nada, nem mesmo nas vozes que não me distraem mais, cada qual falando seu texto, sem ouvir o que o outro diz, o vazio das vozes, talvez tudo se resuma a isso, talvez minha voz seja apenas uma gravação unívoca a que chamo vida.

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