Fiquei desempregado mais de um ano. Casado, com contas para pagar, minha mulher trabalhando feito maluca, eu visitando as empresas, recebendo não na cara, a primeira coisa que pegava no jornal eram os classificados. Nem lia o resto do jornal. Já minha mulher trabalhava oito horas em pé no balcão do Othon Palace Hotel, na Avenida Atlântica. Aquilo acabava com meus nervos. Meus nervos estavam em pandareco. Meus nervos. O apartamento em Botafogo, na Marquês de Olinda, era minúsculo. O apartamento se apertava ainda mais. Diminui diminui diminui. Via as janelas diminuírem, o ar pendurado no teto. Um médico me receitou colchão para os nervos, um comprimido que fazia o ar denso baixar do teto.
Como não deu resultado, busquei homeopata. Olha minhas mãos, doutor, como tremem. Indicou-me uma farmácia na Rua da Carioca. Farmácia bonita, toda de madeira e vidro. Escadas rolavam de um lado para o outro a fim de que os funcionários alcançassem os medicamentos no alto da estante. Ô, João, pega o pote de magnésio aí em cima. Os móveis, pesados e escuros, de jacarandá, maciços. Os potes, com pó colorido, davam a impressão agradável de balas pra crianças.
Paguei no caixa. Vim caminhando para a saída da farmácia, quando vi, contra a luz, o vulto de tio Lúcio. Não parou nem me reconheceu. Os anos brincam de esconde-esconde. Há anos que você passa num canto escuro – a brincadeira acaba e você continua no canto escuro. Só podia ser engano, alguém muito parecido. Um sósia. E além do mais, disse com o coração disparado, eu o havia visto contra a luz. É, contra a luz. Esperei do lado de fora da farmácia e mais um pouco saía tio Lúcio. Não havia dúvida, era ele. Segui-o. Mas o homem andava rápido e se perdeu na multidão. Tio Lúcio, na multidão.
A imagem de tio Lúcio se colou na parede da minha insônia. Olhava para a parede, para a televisão, olhava para o quadro e o quadro era a foto de tio Lúcio. Era preciso arrancar tio Lúcio dos meus olhos.
O mesmo tipo de roupa, o cabelo glostorado, o jeito magro de gentleman. Não era o tio Lúcio dos últimos tempos: bêbado, desastrado, apaixonado. O tio Lúcio que eu vi tinha pelo menos dez anos menos do que quando tio Lúcio morreu. Que diabo seria aquilo? Resolvi voltar à farmácia para ver se o encontrava. Mas, se era tio Lúcio, por que não me reconheceu? Talvez não tenha me reconhecido porque estava morto. Um morto não deve reconhecer as pessoas, nem mesmo ter memória.
Minha mulher disse que eu sofria o pânico de tio Lúcio, a síndrome de tio Lúcio, embora não me explicasse o que vinha a ser o pânico e a síndrome de tal doença. Minha doença era o passado. O sintoma, o desemprego que me colava imagens na parede da cabeça.
O desempregado tem o vício de empregar-se em pequenezes. O miúdo passa a ser expediente. O detalhe, o relógio de ponto. Vestia-me como quem se emprega. Agora as hipóteses. As hipóteses são boas para quem é obsessivo ou está desempregado, o que dá na mesma. Primeiro, tio Lúcio não tinha morrido e aquele enterro foi uma farsa. O caixão lacrado. A família chorou o rosto deformado do defunto. Mas por que razão tio Lúcio iria enterrar outro corpo e se manter anônimo vida afora? Os mortos têm a imaginação transbordante.
Voltei, voltei, voltei. A obsessão do desempregado. Atravessei a rua. Aproximei-me dele. Tio Lúcio, chamei. O homem não se virou. Tornei a chamá-lo. Ele deu meia-volta e se perdeu outra vez na multidão. O gerente confirmou que o homem de terno, cabelo glostorado, moreno, trabalhava para a farmácia. O nome de tio Lúcio era Alfredo. O gerente me perguntou se eu era da polícia ou coisa parecida, por que o interesse em seu Alfredo, homem pacato, que trabalhava há anos para a farmácia?
O revólver não faz volume apenas no coldre, faz volume na cabeça. Mas de que me protegia? Eu devia, em vez de botar o revólver no coldre, era botar as ideias no lugar. Mas eu não sabia onde estavam as ideias, soltas, erráticas, do outro mundo. A fantasmagoria degrada: tivera cargos altos, prestígio, agora, escondido da família e, principalmente, do tempo, era um empregado subalterno.
Minha cabeça não pode rodar. Um homem que tenha a cabeça que roda não pode dormir, não pode andar, não pode estar no mundo. Eu primeiro tinha que fazer minha cabeça deixar de ser pião. Um pião lento, mas persistente, um pião obsessivo. Depois um homem não pode viver com a presença de um morto. E mais ainda: um homem não pode desconfiar dos seus sentidos. Ter matreirice em relação aos olhos, desconfiar do olfato, olhar de banda para o tato.
Só havia um remédio: matar tio Lúcio.
Não sou violento, desconheço como se usa um revólver, aliás, nunca peguei num revólver. Mas tinha que me familiarizar com a arma. Perguntei ao porteiro se conhecia alguém que vendesse arma.
– Conheço, não, doutor. Mas para que o senhor quer uma arma?
– Tenho um sítio, Severino – disse eu. – Acho que tem raposa comendo galinha.
Uma semana depois, Severino me trazia o revólver.
Fiz de uma lata vazia o corpo sem entranhas, diminuto, sem membros ou cabeça, fiz da lata corpo humano. Ainda pior: imaginei a cabeça de lata de tio Lúcio. A bala entraria pela lata adentro e não faria mal algum, porque uma lata vazia e a cabeça de um morto os dois não têm vísceras, entranhas, miolos ou coisa que o valha.
Cheguei perto de tio Lúcio, surpreendi-o por trás e atirei na cabeça dele. Na cabeça de lata dele. Na cabeça vazia de lata dele. Mas a lata começou a sangrar e espirrar sangue que lata não tem. A lata respingou sangue na minha camisa e na minha mão.
Merda. Eh.
Um ano depois, continuava desempregado. Logo, por consequência, minha mulher não podia deixar o emprego e não engravidara. Eu continuava a tomar os remédios homeopáticos para os nervos. Certa tarde, estava na fila do cinema, quando avistei tio Lúcio. Quem então eu matara em frente da farmácia homeopática, quem?
(do livro Manual de Tortura, contos, Esquina da Palavra, 2007)
imagens retiradas da internet
(do livro Manual de Tortura, contos, Esquina da Palavra, 2007)
imagens retiradas da internet
Em poucas palavras: desconcertante, intrigante e inquientante. Parabéns, Ronaldo. Abraços!!!
ResponderExcluir