domingo, 16 de julho de 2017

No afiado lume de Laminário

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No afiado lume de Laminário

Angélica Torres Lima

O brilho do olhar de Margarida Patriota no reflexo da visão de paisagens externas e internas mostra isso: não de torre de marfim, mas de um seu Olimpo no cimo do planalto ela divisa panoramas sob o sol sobre tormentas e os compartilha em afiada poética. Margarida porta uma escola na perícia dos seus versos. Querendo aprender sobre ars poética na prática, saber como se aprimoram versos, em Laminário a lição.

Doutora em literatura francesa, densa conhecedora dos simbolistas, ela tem a chave nas mãos para abrir, transversar, ziguezaguear, fechar o poema, no feitio que desejar. E que não se apressem em acondicioná-la em letras de mulher, embora se possa espionar a “nudez pleiteando agasalho”, antes e depois do baile, e vislumbrar sob essa pele a personagem que se mostra na cosmogonia de sua escrivaninha-penteadeira.

De fato, à medida que se adentra o poemário, um camafeu, relíquias, flores, aromas da rubiácea, sutilezas da convivência amorosa transparecem entre as imagens da realidade feminina. “Penso o mundo  ̶  penso/ o coração nas mãos. / Penso o mundo com renúncia /abnegação de mãe/ Enquanto penso / penso curando mágoas / O mundo infenso / continua a sangrar” (em Do vão pensar). No entanto, a poeta vai além do espelho sem que lhe descubram ao certo se é de fêmea ou macho, se de Lesbos ou pseudo-hermafrodita, se de eunuco ou querubim o sexo do poema.

E assim supragênero ela sai com o olhar agudo e crítico de cronista retratando tipos e costumes, contrastando-os às vezes lado a lado nas lâminas, com inteligência ferina e certeira, como em Desencontro de gerações. Margarida Patriota vive seu tempo em diferentes tempos tramados no eco de seu cotidiano erudito e de suas viagens pelo mundo da História, da cultura, da plataforma das redes virtuais.

E nesse amplo universo, o leitor pode identificar claramente, mesmo entre sutis amarguras em figura-fundo, a inconfundível protagonista de boas sortes, desde a selfie do bebê (“Quando eu ia de colo em colo / como de deus em deus”, em Politeísmo). Poeta da era aquariana, racional, ela tem no substrato de seus poemas um q da waltwhitmania de ser mesmo otimista, positiva, de celebrar a vida  ̶  a morte, por exemplo, não é tema contemplado em Laminário.

Nessa linha de humor estão as boas lembranças da infância no interior (em Escola Rural e Menina de Engenho), as troças ao sorriso-riso, irônico e autoirônico embutidos ou explícitos (“Arrolo como um Napoleão de hospício / dinastias e impérios que herdei”, em Patrimônio), ironia flagrante, às vezes amarga outras, cruel, nas suas sempre torneadas imagéticas e sonoras palavras (“Pelos destroços do massacre atômico / Ri de escárnio fumegante / Quem há de assegurar entre os pósteros / A metástase da graça”, em Hecatombe.). 

Nos poemas, sem alinhavo temático linear certamente por propósito pessoal, Margarida Patriota cria metáforas desconcertantes como esta “metástase da graça”, outras poderosas, como a dos versos de Terremoto: “Sob a falha geológica / Hefesto traído / subleva o magma” e de Juízo Antefinal:  “As horas mortas fiam / que hei de arrastar a eternidade / entre os cheios de vontade”; mas também delicadas, como na antítese de Poema Práxis: “Ombro em que me alojo/ em fim de dia estafante / Peito em que desabo / travesseiro, alfombra”.

Em especial, surpreende o primor técnico na lapidação dos metapoemas, como este Plataforma de Vanguarda: “Desordene-se a frase esteio/ para que o ruído britadeiro / sobrepuje a melodia (...) / Ataque-se o nexo / para que o insólito / substitua o tino”.  E mais este, Inspiração: “A louca foge da masmorra / em alvoroço e desalinho // Pede-me um trato / pede-me roupas /pede-me um banho de boutique // Em polvorosa me coloca / fixa em dar-lhe a todo transe / o trato, a roupa, o banho, a lua”.

Até mesmo entre os vários da temática amorosa ela alcança com graça especial o capricho de seu estilo mordaz, ao descrever a segura e independente cidadã de Sentença:

Partiu felino
Sem me encarar
Nem murmurar adeus

Partiu exalando
Cômodo fora
A colônia que lhe dei

Lastimável incúria
Que aprisiono sem decreto
Nem direito a fiança

Num alvéolo de lembrança.


Margarida Patriota domina amplamente a prosa nos quase 30 livros de contos, novelas, romances, ensaios e histórias juvenis que compõem sua trajetória literária ao longo de décadas. Tardou portanto a estrear em poesia – Laminário (7Letras, 2017) é o seu primeiro no gênero. Pois que venham outros mais, sem mais demora.

Um comentário:

  1. Excelente resenha, que combina as perícias da resenhista e da poeta! Parabéns às duas e ao querido amigo Ronaldo, quem publica o belo texto!

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