No afiado lume de Laminário
Angélica
Torres Lima
O brilho do olhar de Margarida Patriota no
reflexo da visão de paisagens externas e internas mostra isso: não de torre de
marfim, mas de um seu Olimpo no cimo do planalto ela divisa panoramas sob o sol
sobre tormentas e os compartilha em afiada poética. Margarida porta uma escola
na perícia dos seus versos. Querendo aprender sobre ars poética na prática, saber como se aprimoram versos, em Laminário a lição.
Doutora em literatura francesa, densa
conhecedora dos simbolistas, ela tem a chave nas mãos para abrir, transversar, ziguezaguear, fechar o poema,
no feitio que desejar. E que não se apressem em acondicioná-la em letras de
mulher, embora se possa espionar a “nudez pleiteando agasalho”, antes e depois do
baile, e vislumbrar sob essa pele a
personagem que se mostra na cosmogonia de sua escrivaninha-penteadeira.
De fato, à medida que se adentra o
poemário, um camafeu, relíquias, flores, aromas da rubiácea, sutilezas da
convivência amorosa transparecem entre as imagens da realidade feminina. “Penso
o mundo ̶ penso/ o
coração nas mãos. / Penso o mundo com renúncia /abnegação de mãe/ Enquanto
penso / penso curando mágoas / O mundo infenso / continua a sangrar” (em Do vão pensar). No entanto, a poeta vai
além do espelho sem que lhe descubram ao certo se é de fêmea ou macho, se de
Lesbos ou pseudo-hermafrodita, se de eunuco ou querubim o sexo do poema.
E assim supragênero ela sai com o olhar
agudo e crítico de cronista retratando tipos e costumes, contrastando-os às
vezes lado a lado nas lâminas, com inteligência ferina e certeira, como em Desencontro de gerações. Margarida
Patriota vive seu tempo em diferentes tempos tramados no eco de seu cotidiano
erudito e de suas viagens pelo mundo da História, da cultura, da plataforma das
redes virtuais.
E nesse amplo universo, o leitor pode
identificar claramente, mesmo entre sutis amarguras em figura-fundo, a
inconfundível protagonista de boas sortes, desde a selfie do bebê (“Quando eu ia de colo em colo / como de deus em
deus”, em Politeísmo). Poeta da era
aquariana, racional, ela tem no substrato de seus poemas um q da waltwhitmania de ser mesmo
otimista, positiva, de celebrar a vida ̶ a morte, por exemplo, não é tema contemplado em Laminário.
Nessa linha de humor estão as boas
lembranças da infância no interior (em Escola
Rural e Menina de Engenho), as
troças ao sorriso-riso, irônico e autoirônico embutidos ou explícitos (“Arrolo
como um Napoleão de hospício / dinastias e impérios que herdei”, em Patrimônio), ironia flagrante, às vezes
amarga outras, cruel, nas suas sempre torneadas imagéticas e sonoras palavras
(“Pelos destroços do massacre atômico / Ri de escárnio fumegante / Quem há de
assegurar entre os pósteros / A metástase da graça”, em Hecatombe.).
Nos poemas, sem alinhavo temático linear
certamente por propósito pessoal, Margarida Patriota cria metáforas
desconcertantes como esta “metástase da graça”, outras poderosas, como a dos
versos de Terremoto: “Sob a falha
geológica / Hefesto traído / subleva o magma” e de Juízo Antefinal: “As horas mortas
fiam / que hei de arrastar a eternidade / entre os cheios de vontade”; mas também delicadas, como na antítese
de Poema Práxis: “Ombro em que me
alojo/ em fim de dia estafante / Peito em que desabo / travesseiro, alfombra”.
Em especial, surpreende o primor técnico
na lapidação dos metapoemas, como este Plataforma
de Vanguarda: “Desordene-se a frase esteio/ para que o ruído britadeiro /
sobrepuje a melodia (...) / Ataque-se o nexo / para que o insólito / substitua
o tino”. E mais este, Inspiração: “A louca foge da masmorra /
em alvoroço e desalinho // Pede-me um trato / pede-me roupas /pede-me um banho
de boutique // Em polvorosa me coloca / fixa em dar-lhe a todo transe / o
trato, a roupa, o banho, a lua”.
Até mesmo entre os vários da temática
amorosa ela alcança com graça especial o capricho de seu estilo mordaz, ao
descrever a segura e independente cidadã de Sentença:
Partiu
felino
Sem
me encarar
Nem
murmurar adeus
Partiu
exalando
Cômodo
fora
A
colônia que lhe dei
Lastimável
incúria
Que
aprisiono sem decreto
Nem
direito a fiança
Num
alvéolo de lembrança.
Margarida Patriota domina amplamente a
prosa nos quase 30 livros de contos, novelas, romances, ensaios e histórias
juvenis que compõem sua trajetória literária ao longo de décadas. Tardou
portanto a estrear em poesia – Laminário
(7Letras, 2017) é o seu primeiro no gênero. Pois que venham outros mais, sem
mais demora.
Excelente resenha, que combina as perícias da resenhista e da poeta! Parabéns às duas e ao querido amigo Ronaldo, quem publica o belo texto!
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