O universo do absurdo ou o absurdo do universo
Ronaldo Costa Fernandes
Cosmos não é um romance convencional. O leitor comum não deve esperar uma história linear com personagens lógicos e atuando diante de um conflito pertinente. A atmosfera de Cosmos (Companhia das Letras, 2007) é a do nonsense, do desconcerto e da hilaridade nervosa. Considerado um dos grandes mestres do século XX, Gombrowicz (1904-1969), em 1939, exilou-se na Argentina, fugindo de sua Polônia natal e do nazismo. Passou 24 anos em Buenos Aires e ali, empregado miseravelmente num banco polonês, conviveu com os escritores argentinos, embora fugindo do grupo de Borges de quem nunca gostou e que pontificava no país portenho.
Ao partir da Polônia, Gombrowicz já publicara, em 1937, seu primeiro romance, chamado Ferdyduke (uma palavra que não significa nada). Ou seja, o ambiente literário de Buenos Aires não o influenciou, pois o autor já tinha um estilo formado mesmo com a pouca idade. Se influência houve foi sobre os argentinos (Ricardo Piglia mesmo declara que um dos seus romances deve muito a Gombrowicz).
Retornando à Europa, fixa-se em Paris e publica, em 1965, Cosmos, que ganha o Prix International de Littérature e o reconhecimento do mundo literário. Sua literatura tem muito de Ionesco e de Beckett, desde o deboche com que trata o tema narrado, mas também a escritura “desencontrada” e que se fixa em pormenores que outros autores desprezariam: o pardal morto, a boca de sapo de uma personagem, uma seta, as conversas triviais sem aparente significado para a trama. Cosmos é um livro para quem gosta de literatura e não um passatempo de leitura. O universo de frases entrecortadas, as longas sentenças com pontuação pouco ortodoxa, a reiterativa descrição de mãos que podem se tocar com luxúria, de bocas de mulheres que ele acredita licenciosas, a obsessão de descobrir e dar nexo a fatos ordinários fazem do livro um conjunto de situações comuns que o autor apresenta de forma exagerada.
Os personagens de Cosmos agem sob a égide da farsa, do burlesco e do riso. Gombrowicz parece não levar a sério a literatura dita “séria”. Ele mesmo se chamou de palhaço, numa entrevista. E o mistério que norteia a narrativa e a tentativa de descobrir quem matou o pardal, o gato e, por fim, um homem, durante um passeio campestre que toma quase metade do livro, apresentam-se em tom de parodia e de escárnio ao romance policial. Gombrowicz também se dá ao luxo de brincar com determinadas palavras como a palavra “berg”. Os personagens bergam, outro quer bergar, outro gosta de berg berg. Não está longe das experiências formais e anarquistas dos vanguardistas europeus do início do século XX.
O romance começa quando o narrador e Fuks chegam a uma pensão. Há apenas dois espaços: o da pensão (fechado) e o da montanha (aberto). Durante o romance inteiro, o narrador busca entender a razão de enforcarem um pardal, um gato (que ele assume a autoria) e um homem. Ainda que alguns críticos queiram ver uma “cosmogonia” e um alto valor filosófico em Cosmos, a narrativa não tem essa pretensão nem mesmo esse tom. Cosmos está mais aparentado ao dadaísmo e se há uma intenção filosófica esta é o velho desconcerto do mundo e a vacuidade das ações humanas.
Há também em Gombrowicz certa afasia, ou, como lembra Piglia: “Gombrowicz trabalha sobre a afasia como condição de estilo. O afásico é uma criança crônica”. Esta afirmação de Piglia retrata bem certa perplexidade do narrador perante fatos absolutamente desprezíveis e observações propositalmente infantilizadas. Este talvez seja o grande charme da literatura de Gombrowicz que também já trabalhara com um personagem em Ferdyduke que, aos trinta anos, retorna à escola.
Aqui estamos diante de um fenômeno que existia entre os escritores de vanguarda do século XX. De forma acintosa, desprezavam o mercado. Mais tarde, incensados pela crítica, alcançavam vendagem comercial. Gombrowicz pagou muito caro por sua atitude diante da vida e da literatura. Viveu numa Buenos Aires de marinheiros, prostitutas e vagabundos e optou pela difícil arte de apresentar uma narrativa renovada e não o requentado romance do século XIX que ainda persiste em escritores de todas as latitudes.
O universo do absurdo ou o absurdo do universo
Ronaldo Costa Fernandes
Cosmos não é um romance convencional. O leitor comum não deve esperar uma história linear com personagens lógicos e atuando diante de um conflito pertinente. A atmosfera de Cosmos (Companhia das Letras, 2007) é a do nonsense, do desconcerto e da hilaridade nervosa. Considerado um dos grandes mestres do século XX, Gombrowicz (1904-1969), em 1939, exilou-se na Argentina, fugindo de sua Polônia natal e do nazismo. Passou 24 anos em Buenos Aires e ali, empregado miseravelmente num banco polonês, conviveu com os escritores argentinos, embora fugindo do grupo de Borges de quem nunca gostou e que pontificava no país portenho.
Ao partir da Polônia, Gombrowicz já publicara, em 1937, seu primeiro romance, chamado Ferdyduke (uma palavra que não significa nada). Ou seja, o ambiente literário de Buenos Aires não o influenciou, pois o autor já tinha um estilo formado mesmo com a pouca idade. Se influência houve foi sobre os argentinos (Ricardo Piglia mesmo declara que um dos seus romances deve muito a Gombrowicz).
Retornando à Europa, fixa-se em Paris e publica, em 1965, Cosmos, que ganha o Prix International de Littérature e o reconhecimento do mundo literário. Sua literatura tem muito de Ionesco e de Beckett, desde o deboche com que trata o tema narrado, mas também a escritura “desencontrada” e que se fixa em pormenores que outros autores desprezariam: o pardal morto, a boca de sapo de uma personagem, uma seta, as conversas triviais sem aparente significado para a trama. Cosmos é um livro para quem gosta de literatura e não um passatempo de leitura. O universo de frases entrecortadas, as longas sentenças com pontuação pouco ortodoxa, a reiterativa descrição de mãos que podem se tocar com luxúria, de bocas de mulheres que ele acredita licenciosas, a obsessão de descobrir e dar nexo a fatos ordinários fazem do livro um conjunto de situações comuns que o autor apresenta de forma exagerada.
Os personagens de Cosmos agem sob a égide da farsa, do burlesco e do riso. Gombrowicz parece não levar a sério a literatura dita “séria”. Ele mesmo se chamou de palhaço, numa entrevista. E o mistério que norteia a narrativa e a tentativa de descobrir quem matou o pardal, o gato e, por fim, um homem, durante um passeio campestre que toma quase metade do livro, apresentam-se em tom de parodia e de escárnio ao romance policial. Gombrowicz também se dá ao luxo de brincar com determinadas palavras como a palavra “berg”. Os personagens bergam, outro quer bergar, outro gosta de berg berg. Não está longe das experiências formais e anarquistas dos vanguardistas europeus do início do século XX.
O romance começa quando o narrador e Fuks chegam a uma pensão. Há apenas dois espaços: o da pensão (fechado) e o da montanha (aberto). Durante o romance inteiro, o narrador busca entender a razão de enforcarem um pardal, um gato (que ele assume a autoria) e um homem. Ainda que alguns críticos queiram ver uma “cosmogonia” e um alto valor filosófico em Cosmos, a narrativa não tem essa pretensão nem mesmo esse tom. Cosmos está mais aparentado ao dadaísmo e se há uma intenção filosófica esta é o velho desconcerto do mundo e a vacuidade das ações humanas.
Há também em Gombrowicz certa afasia, ou, como lembra Piglia: “Gombrowicz trabalha sobre a afasia como condição de estilo. O afásico é uma criança crônica”. Esta afirmação de Piglia retrata bem certa perplexidade do narrador perante fatos absolutamente desprezíveis e observações propositalmente infantilizadas. Este talvez seja o grande charme da literatura de Gombrowicz que também já trabalhara com um personagem em Ferdyduke que, aos trinta anos, retorna à escola.
Aqui estamos diante de um fenômeno que existia entre os escritores de vanguarda do século XX. De forma acintosa, desprezavam o mercado. Mais tarde, incensados pela crítica, alcançavam vendagem comercial. Gombrowicz pagou muito caro por sua atitude diante da vida e da literatura. Viveu numa Buenos Aires de marinheiros, prostitutas e vagabundos e optou pela difícil arte de apresentar uma narrativa renovada e não o requentado romance do século XIX que ainda persiste em escritores de todas as latitudes.
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