VIEIRA E O ROMANCE DE RONALDO
Lourival Serejo
O escritor Ronaldo Costa Fernandes, nosso
confrade na Academia Maranhense de Letras, está vivendo um período de elevada
criatividade, com sucessivos lançamentos de livros, nas categorias de ensaios,
poesias e romances.
Acabei de ler os dois últimos romances de
Ronaldo: O apetite dos mortos e Vieira na ilha do Maranhão.
O primeiro é uma obra de autoficção, em
que realidade e ficção se misturam para
formarem uma “quase memória”. Logo ao abri-lo, o leitor é atraído pelo impacto suave
da primeira frase: “Quem me ensinou a dar nó na gravata foi meu vizinho”.
O segundo romance, Vieira na Ilha do Maranhão, embora tenha um título que possa
confundir o curioso de livrarias, ao supor que se trata de uma obra sobre a
vida do grande inaciano, é um livro que ratifica o talento do autor como
ficcionista. Uma leitura recomendável para os literatos e historiadores maranhenses.
O ficcionista, em seu exaustivo trabalho
de “preencher as páginas em branco da história”, exerceu aquilo que o autor de Geografia do romance – Carlos Fuentes –
menciona: “O romancista estendeu os limites do real, criando uma realidade com
a imaginação, dando-nos a entender que não haverá mais realidade humana se não
a cria, também, a imaginação humana”.
Naquele espaço colonial, instável,
encontram-se personagens conhecidas da nossa história, vagando pelos becos,
naturalmente, como João Felipe Bettendorff
e o próprio padre Antônio Vieira.
Ronaldo nos oferece um perfil do grande
sacerdote, envolvido com os problemas da povoação e com o destino dos seus
moradores, amargando o ódio que os proprietários lhe dedicavam pela sua atuação
em favor dos povos indígenas, o que culminou com sua expulsão da ilha do
Maranhão. A pregação de Vieira para aquela gente temente a Deus é bem descrita
pelo autor, que enfoca o transe que prendia os ouvintes durante os seus sermões,
considerados pelos fidalgos como “demoníacos”, pregados na igreja de Santo
Antônio. Como diz o autor, “os fidalgos bufavam, inquietos no banco
incomandante”.
Sobre essas ocasiões, o autor nos
transporta, com mestria, para o momento em que Vieira pronuncia o Sermão dos
Peixes, em 13 de junho de 1654, no dia da festa de Santo Antônio, diante das pessoas
mais importantes do lugar, inclusive o governador. Três dias depois, ele
embarcaria para Portugal.
Ao lado de Vieira, a Igreja estava
presente com os padres Carcavaz, José Soares, José Antônio e Ambrósio, além do
holandês João Felipe Bettendorff. Esses jesuítas viviam isolados no Colégio
Nossa Senhora da Luz.
Em certo momento, parei a leitura para
controlar o fluxo das personagens. Então, percebi que todas correspondiam ao
ambiente em que o narrador, dom João Serafinho, vivia, cheio de colonos, fidalgos e aventureiros de toda espécie, como
António Porqueiro; Caga-Osso; Felipe do Couto; Bento Maciel, o padeiro; a viúva
Jacomé; Ritinha; Maria a Afogada etc.
Dentre os personagens do romance, além de
Vieira, destaca-se a figura do “médico” e fidalgo dom Rui, filho de dom João
Serafinho.
Outro fato a destacar, no cenário criado
pela imaginação de Ronaldo, é a presença
do sapateiro José Manoel Gordilho, que fazia profecias em forma de versos,
inspirados, segundo ele, “por uma possessão”. Logo Vieira dedicou-se a escutá-lo,
tentando buscar alguma semelhança com o português Bandarra, também sapateiro e
profeta, o qual muito lhe inspirou na sua teimosia de anunciar a elevação de
Portugal como o Quinto Império.
O grande mérito do romance de Ronaldo foi conseguir transportar o leitor para o âmbito
geográfico da ilha de São Luís, então conhecida como ilha do Maranhão, povoando o espaço vazio daquele período
histórico, para registrar os seus
primeiros anos de existência: as famílias, o puteiro de Antonieta a Francesa
(sem vírgula), os apelidos, a vida do governador, os comerciantes portugueses,
os índios domesticados e os famintos, as doenças, as disputas comerciais e
amorosas, o movimento do porto, as intrigas familiares e a presença da Igreja.
Para aquilatar o valor dessa obra, o
leitor deverá ir até à última página e
depois transportar-se para aquele ambiente e misturar-se com toda aquela gente.
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