Em seu novo romance, Ronaldo Costa Fernandes aposta na força poética das palavras. Faz do épico/lírico O ano da revolta dos desvalidos (RJ: 7 Letras, 2024) obra cuja força reside na escolha do léxico, no fino trabalho de ourivesaria do campo semântico. Cada vocábulo escolhido com precisão segue a lição de Flaubert da “palavra certa no lugar certo”. Esse é o primeiro aspecto que chama a atenção do leitor. É um desdobramento da sua vasta e premiada poesia, densa e ao mesmo tempo delicada e refinada. Originalíssima.
Dando
continuidade à saga dos acontecimentos históricos do seu estado natal, o
Maranhão, Ronaldo que, com igual maestria, já transformara em ficção a presença
do padre Vieira em Vieira na Ilha do Maranhão (2019) e os episódios da
revolta da Balaiada (2021), nesse romance sintético, com capítulos
curtos, conta a história da revolta liderada por Manuel Becker, conhecido
popularmente como “Bequimão”, contra as medidas do governo português, o
estanco, que prejudicava os produtores locais, em 1685. E, paralelo a isso, o
comovente drama familiar de José Quirino, personagem riquíssimo em aspectos
humanos e psicológicos.
O
romance se desenvolve com flashbacks revelando o passado desse homem
desterrado, sem pertencimento à ilha de São Luís, onde há muito vive. Chegou a ser um religioso em Portugal,
sua pátria (o que lhe dá verossimilhança quanto à sua cultura e pensamento
intelectual). Para se definir, utiliza a metáfora da água, tanto do mar quanto
do rio Coti, que o cerca: “Fico pensando quantos rios me banham” (p. 71). E
para descrever a mulher Teodora:
Teodora era um rio violento, desses que têm
cachoeiras e quedas d’água. Suas águas eu não poderia represar. Tinha
consciência de que lidava com um rio tumultuoso e indômito. (p. 72).
E
mais outros rios:
Ainda outros rios me habitam: o rio civil e
colono, o rio comerciante e de vereança, o rio das ruas. O que são as ruas
senão rios secos feitos de pedra, areia e barro? Que são minhas pernas senão um
remo que me leva a um canto e outro da cidade? Que são as casas dos colonos, as
mais aristocráticas, senão galeões ancorados no grande porto da cidade? A
primeira grande multidão não vi em Lisboa, mas aqui mesmo, mais de trezentas
pessoas na praça maior, em frente da câmara, do palácio e da igreja dos roupetas.
Trezentos homens armados com espada, pau e pedra, vociferando contra os
jesuítas e a governança. Percebi que ali estava não mais os rios afluentes e
nervosos, pequenos e retorcidos das ruas da cidade, mas o império oceano da
fúria. (p. 72).
Nessas
belíssimas passagens em que a exploração do campo semântico da água atinge
múltiplas significações, vemos o compromisso do autor com o fazer poético. O
resultado desse garimpo é a riqueza do texto, elevando-o ao mais alto patamar
literário.
Quirino,
em sua fala reflexiva e sensível, merece destaque desde as primeiras páginas
quando fala da filha única, a bela Maria, dolorosamente chamada de “sombra”:
Minha filha é apenas uma sombra de gente, que
se mexe, se alimenta, defeca, urina, urra pelas noites de lua como uma cadela,
mas não tem consciência de que vive. Talvez eu devesse dizer que ela é uma
sombra que tem consciência de que não passa de uma sombra. Ou ainda dizer que
ela tem consciência – porque os sentimentos também pensam, os sentimentos nos
fazem pensar, porque o gozo e a dor sobem até a cabeça e temos consciência da
dor e do gozo – e bem dizia que ela tem consciência de que é um ser vivo, um ser
destroçado, imperfeito, nulo, inservível para a vida da cidade, a vida dos
comerciantes, dos barqueiros, dos padres e das autoridades. Mas ela sabe que é
minha filha e que é diferente das outras mulheres. (p. 6).
O
cerne da questão do romance está na vida frustrada desse homem, marido da
mulher ausente e pai da filha duplamente ausente que muito o fazem sofrer e
que, “como as marés”, um dia encheram sua vida para logo depois a esvaziarem. E
é no vazio da sua vida seca, murcha e solitária de pai cuidadoso que vê a filha
infantilizada, “idiota”, cair de amores pelo também adolescente “idiota”
Abelardo:
O rapaz era tão idiota como a filha, percebeu
José Quirino. Ele não ia deixar que dois idiotas se casassem, fossem morar
sozinhos e tivessem filhos idiotas, prolongando a permanência de idiotas na
ilha. (p. 22).
O
nome Abelardo nos remete ao sábio e filósofo francês da Idade Média, Abelardo,
apaixonado pela discípula Heloísa, os quais viveram um romance trágico – pois
contrário à vontade dos pais da jovem; remete-nos ainda com mais propriedade ao
amor puro dos jovens Paulo e Virgínia, personagens do romance homônimo de
Bernardin de Saint-Pierre, clássico da literatura francesa, de 1787. Livro
encantador inspirado nas ideias de Rousseau, que se tornou mítico pelo tema da
volta à natureza como refúgio dos amantes.
Há,
portanto, dois movimentos na narrativa de Ronaldo: um, em direção ao mundo
exterior à casa de José Quirino, que mostra o conflito entre o governo e os
rebelados com a prisão do herói Bequimão; e outro, ao interior da sua casa e,
mais ainda, ao interior dele mesmo, um anti-herói. Este, subjetivo e sutil,
transformando o acontecimento sugerido no título em quase um pano de fundo,
painel do tempo em que a ação se desenrola.
Com
o discurso ora em terceira ora em primeira pessoa, a narrativa aproxima e
distancia Quirino alternando-o como narrador e personagem:
O comércio da leitura com os padres me faz um
bem danado, mas ao mesmo tempo me frustra porque me retira de minhas ambas as
casas, de taipa e alvenaria, e me coloca no vácuo. Sou assim vizinho do etéreo,
do nada, do impermanente e do risível – alguns colonos riem de mim e pensam que
tenho miolo mole e que a doença de Maria ela herdou de mim, embora não leia e
desconheça quem seja Sêneca. (p. 40).
Em algum momento, José Quirino andou pelas
terras do Mearim e também teve a alma doce e industriosa como a de Manuel
Bequimão. (...) Naquele tempo era um homem só, nem conhecia a sua futura
esposa. (p. 43).
Quirino
vive solitário na casa enorme, pois a criada dona Raimunda, no seu canto, não é
lá muito certa das ideias. Chegou a pisar no mundo da desrazão:
Houve uma época em que pensei que havia
perdido dona Raimunda. Ela variava, não sabia que era dona Raimunda e me
perguntou o que fazia em casa. Desconheceu a razão e Maria, quis
desalimentar-se do mundo. Ficou muda, e quando falava, dizia que a trouxeram
num navio negreiro, que seus pais eram negros da África, e podia-se bem ver a
pele leitosa de dona Raimunda enlouquecer os desvios da razão. (p. 69).
Mas
dona Raimunda também tem voz: depois de narrar o seu passado de sofrimento,
diz:
Apareceu por essa época o senhor José Quirino
que tinha a filha avariada e queria uma senhora que cuidasse da menina.
Afeiçoei-me aos Quirinos, por esse tempo ainda dona Teodora não havia
abandonado a morada. (p. 86).
Nesse
tempo da chegada dos negros africanos escravizados para a vida miserável que os
aguardava, tudo era pesadelo na história do Brasil-Colônia onde vivia essa
gente degredada e “sem valor”. Pesadelo que se torna também metáfora do
desaparecimento da filha de Quirino, o que nele reafirma e institui mais do que
nunca a função do pai. Pai preocupado, amoroso, diligente, que abdica da guerra
na cidade sitiada em favor da guerra particular, na busca mítica da filha. É,
portanto, de perda, culpa e reparação que trata a vida do atormentado e bom
Quirino; da indiferença da natureza selvagem ante um ser destroçado, já sem “o
ímpeto das águas turbulentas” de outros tempos; e da força avassaladora e
impiedosa da floresta que atrai e engole os que nela se aventuram, tornando-se
lendas.
Assim,
José Quirino busca nas profundezas da floresta a filha amada e nas profundezas
da sua alma o sentido da paternidade. Uma longa viagem do si ao si mesmo,
andando em círculos.
E
Ronaldo Costa Fernandes busca a força e a poesia nas profundezas das palavras
nessa história tocante, humana, muito humana...
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